Fundação Padre Anchieta

Custeada por dotações orçamentárias legalmente estabelecidas e recursos próprios obtidos junto à iniciativa privada, a Fundação Padre Anchieta mantém uma emissora de televisão de sinal aberto, a TV Cultura; uma emissora de TV a cabo por assinatura, a TV Rá-Tim-Bum; e duas emissoras de rádio: a Cultura AM e a Cultura FM.

CENTRO PAULISTA DE RÁDIO E TV EDUCATIVAS

Rua Cenno Sbrighi, 378 - Caixa Postal 66.028 CEP 05036-900
São Paulo/SP - Tel: (11) 2182.3000

Televisão

Rádio

Divulgação
Divulgação

O mundo ficou menos alegre, inteligente e bonito com a morte, na última quarta, do quadrinista argentino Quino. Joaquín Salvador Lavado (1932-2020) ficou famoso por sua cativante personagem Mafalda, cujas histórias publicou de 1964 a 1973.

Sou muito fã do Quino. Na minha opinião, seu trabalho com cartuns era tão incrível quanto as histórias da menina contestadora. Eles são menos famosos, e aproveito para deixar aqui a sugestão: caso não os conheça, dê uma chance. O humor, o lirismo e a crítica social, tão presentes nas HQs da Mafalda, também estão lá. Sem o formato das tiras, ele tem até mais liberdade para inovar na maneira de contar suas histórias.

Entrevistei o Quino pessoalmente há muito tempo: em 1999. Era um homem educado e gentil que falava rapidamente, e eu não queria perder palavra alguma. Para não desperdiçar tempo virando as páginas do meu bloquinho, comecei a anotar nas margens, no espaço entre as linhas, onde fosse. O olhar aquilino de Quino pegou isso, é claro. Ele segurou as minhas mãos e sorriu: "Calma! Está até me dando agonia!", brincou. E passou a falar mais pausadamente.

Não à toa, o título dessa coluna começa com "relembrando Quino". Sua arte é incrível e merece louvor. E essa arte não existe à parte da sociedade que ela contesta: o talento e o humor do Quino estão à serviço do desejo de melhorar o mundo à nossa volta. 

Leia também: Quero começar a ler quadrinhos. E aí, por onde eu começo?

Fui resgatar minhas anotações daquela entrevista. Algumas frases continuam atuais - infelizmente. Separei apenas três: acho que elas nos ajudam a aprofundar um pouco sobre a obra dele.

"Minhas charges mostram sempre situações de uma pessoa mais poderosa ou rica frente a outra mais humilde ou pobre.”

Vivemos em uma sociedade socialmente desigual. Isso fica ainda pior pelo fato de existir quem negue isso.

Quino queria mais do que combater a desigualdade: desejava nos lembrar, o tempo todo, de que ela existe. Às vezes, ela está em momentos corriqueiros, sem que as pessoas envolvidas percebam que estão perpetuando uma situação.

Procure, nos livros do Quino, frases como “a gente é educado, a gente tem berço”, “seu lixo, você tem inveja da minha classe social”, “ele é meu delegado”, “você sabe com quem está falando?”. As palavras não estão literalmente lá, mas esse tipo de comportamento está imortalizado – e devidamente criticado – de dezenas de maneiras diferentes. Afinal, há seres humanos que agem assim desde sempre.

"Também abordo muito os temas sociais, mas sempre sem usar os personagens verdadeiros do mundo político da Argentina.”

A Mafalda, o fofo do seu irmão e seus pais representam a classe média argentina. Ao mesmo tempo, representam a classe média do mundo inteiro. Quino deu um caráter universal à sua célebre personagem e sua família.

Nos cartuns sem personagens fixos, então, fica ainda mais claro que Quino retrata toda a humanidade. Com humor, com lirismo... mas com a sobriedade necessária para apontar um erro e dizer: “tá vendo? Não é certo que isso aconteça assim”.

"Não era minha intenção que a Mafalda durasse tanto. Eu esperava que o mundo melhorasse, mas a política liberal está tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres ainda mais pobres. O resultado dessa política é lastimável.”

Quino queria um mundo melhor, em que a distância entre os ricos e os pobres diminuísse, com a população tendo mais saúde e educação ao alcance. Aí nós olhamos pela janela... e o que vemos? Eu compreendo que ele tenha usado a palavra lastimável no distante ano de 1999. Hoje, temo, talvez usasse uma expressão ainda mais severa.

PS – Quino conseguia provocar um monte de reflexões ao mesmo tempo em que provocava sorrisos (ou, no mínimo, suspiros, nas páginas mais líricas). Vou terminar este texto com uma frase do escritor argentino Julio Cortazár (1914-84): “O que eu penso da Mafalda não importa. Importa mesmo é o que a Mafalda pensa de mim.”.

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. Nascido e criado em São Paulo, é filho de um físico luso-angolano e de uma jornalista paulistana.

Siga também o site Hábito de Quadrinhos no Instagram, Facebook e Twitter