Fundação Padre Anchieta

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Há algo de interessante quando a História está sendo escrita. Acho que as testemunhas, a princípio, não percebem. Talvez nem o próprio protagonista. E nunca é da noite pro dia. “Olha, esse tal Edson joga bola bem, né?” Alguns anos depois, Pelé é o primeiro (e até hoje único) jogador tricampeão mundial de futebol.

Fiz essa introdução porque acabei de ler a biografia de um dos maiores artistas de todos os tempos: o japonês Hokusai (1760-1849). Você talvez não esteja reconhecendo o nome, mas provavelmente já viu antes A Grande Onda de Kanagawa – a imagem que abre este texto. Digo acho que você já teve contato com ela não só por ser um emoji no seu celular, mas por ser a obra de arte mais reproduzida do mundo.

É difícil definir em poucas palavras com o que trabalhava Hokusai. Ilustrador, sem dúvida, embora também tenha escrito livros. Xilogravurista. Pintor. A palavra artista resume bem, é claro. Mas talvez caiba aqui um adjetivo: “artista revolucionário”.

Hokusai foi um exímio autor de ukiyo-e, gênero artístico que fez sucesso no Japão do século 17 ao 19 e que consiste em pinturas ou xilogravuras. Podiam ser lutadores de sumô, atores, imagens eróticas, monstros mitológicos, cenas de viagens. Ele era considerado um mestre de ukiyo-e, mas por que parar aí?

Certa vez, Hokusai mandou que dispusessem no chão cem tatames, um ao lado do outro, formando uma espécie de quadrado gigantesco. Quadrado, não: tela: realizou uma enorme pintura sobre esses tatames, tão imensa que só podia ser completamente vista de um lugar alto relativamente longe. Fez isso para mostrar o tamanho da sua técnica, sua capacidade de dominar a proporção da figura humana e sua precisão ao criar. Ele era considerado um mestre da ilustração, mas por que parar aí?

Havia uma inquietação dentro dele. Quando se dava por satisfeito com uma técnica específica, partia para outra. Valia para a Arte, valia para a vida cotidiana. Quando sentia que a casa em que morava já tinha dado tudo o que podia, mudava-se. Sua inquietação era tamanha que chegou a mudar de casa duas vezes no mesmo dia: ou seja, amanheceu em um lar, passou a tarde em outro e adormeceu em um terceiro, duas mudanças depois.

Valia para a vida cotidiana, valia para a Arte, valia para o artista. Hokusai trocou de “nome” (pseudônimo) várias vezes durante a vida. Se trocava um gênero artístico no qual já estava consagrado por outro, não queria levar a fama consigo. Preferia recomeçar do zero e subir novamente ao topo.

E o que Hokusai tem a ver com esta coluna sobre quadrinhos? Duas coisas. Primeiro, essa biografia que li a seu respeito é um ótimo mangá, lançado originalmente em três volumes, mas publicado no Brasil em edição única. Chama-seHokusai (claro!) e foi escrito e ilustrado pelo ótimo mangaká Shotaro Ishinomori (1938-98), criador de Kamen Rider e Cyborg 009.

Hokusai não virou um artista genial da hora para outra. Aliás, ele era artista antes mesmo de virar Hokusai: seu nome de nascimento é Tokitarō, e ele assumiu a personalidade Hokusai já com a carreira de artista estabelecida. E quando falei lá em cima de ver a História sendo escrita é porque Ishinomori foi muito feliz ao retratar uma vida tão intensa e com tantas mudanças.

O segundo motivo tem a ver com um fato de ele ser um artista genial. Hokusai criou um guia de esboços para ensinar como se ilustra. O livro fez tanto sucesso que veio o volume dois. E mais uma sequência. E outra, e outra, e outra… No total, foram 15 volumes com lindos desenhos de animais, pessoas, lugares...

E como chamavam esses livros de esboços do Hokusai? “Mangá.” A palavra que hoje é sinônimo de quadrinhos japoneses só tem esse significado por causa da obra seminal de Hokusai. Ele podia ser meio excêntrico (mudar duas vezes de casa no mesmo dia?! Oi?!), mas não dá para negar seu talento como artista. Nem o que ele fez pela arte japonesa. Mas pela biografia de Ishinomori – e pela sua enorme influência ainda nos dias de hoje -, acho que dá para “perdoarmos” essa excentricidade toda, não?

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romanceVenha me ver enquanto estou vivae da graphic novel Púrpura, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.