O ano de 2020 foi um dos mais atípicos da história. Uma pandemia causada pelo novo coronavírus assolou a população mundial e obrigou todos a se sacrificarem um pouco permanecendo em quarentena. Somado à isso, protestos originados por questões raciais também marcaram o ano, que até contou com o surgimento de uma nuvem gigante de gafanhotos.
No Dia do Quadrinho Nacional, celebrado neste sábado (30), o site da Cultura conversou com alguns quadrinistas brasileiros para saber como o ano passado influenciou temas para as próximas produções, além de ter modificado o mercado e a rotina desses artistas.
Autor de obras como “Tungstênio”, “Talco de Vidro” e “Luzes de Niterói”, Marcello Quintanilha comenta que é inevitável que acontecimentos do ano de 2020 sejam refletidos nas histórias que virão. O próprio escritor diz que pode revisitar algum desses momentos em alguma oportunidade.
“Abordar temas contemporâneos não é o que eu costumo fazer com frequência. Preciso de um certo distanciamento do acontecimento para extrair uma proposta que eu ache interessante. Mas não descarto trabalhar com algum desses temas no futuro”, comenta.
Apesar de preferir tratar de acontecimentos mais distanciados no tempo, Quintanilha já produziu uma curta história com a pandemia de pano de fundo, para uma revista italiana. “Arbítrio” mostra um casal divorciado que vai morar em casas separadas depois de viver a crise causada pela Covid-19 no mesmo local.
“Tratei de um período posterior à quarentena. Quando a gente finalmente conseguisse abrir mão de todos esses cuidados que estamos sendo obrigados a tomar para deixar a pandemia minimamente sob controle. Achei muito interessante, especialmente no que se refere a projeção do que pode vir a ser aquilo que tá se experimentando. Foi o que mais me instigou”, fala o autor, sobre a produção da HQ.
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Outro fato que marcou o ano passado foram as manifestações antirracistas que aconteceram ao redor do mundo, motivados, principalmente, pelo assassinato do segurança negro George Floyd por um policial branco, nos EUA. No Brasil, o espancamento e morte de João Alberto Freitas no estacionamento de um supermercado, na véspera do dia da Consciência Negra, também gerou indignação e protestos.
P.J Kaiowá escreve e desenha “Eu sou Lume”, que acompanha a história de uma garota negra e periférica que é dotada de poderes especiais. O artista pretende produzir mais volumes do material, que, tal qual os protestos do ano passado, carrega consigo um forte contexto social. “Não digo que vá ter alguma coisa específica sobre (manifestações antirracistas), porque a gente já vive em protesto. A luta é a mesma a mais de 400 anos. No primeiro volume eu já falo algo a respeito, nos próximos é inevitável não falar, porque se trata de uma mina preta. Não tem como contornar isso”, diz.
Kaiowá também comenta sobre a presença de elementos da cultura dos quadrinhos em atos de reinvindicação por direitos da comunidade negra pelo Brasil e pelo mundo. “O que me marcou foram as pessoas fantasiadas de super-heróis negros no meio dos protestos. Tinha o Miles Morales (Homem-Aranha), a Miss América, Super Choque. A gente vive essas histórias, e no nosso ponto de vista, eles estavam lá, no lugar certo, fazendo a coisa certa”, comenta.
“Quem vai ao protesto, em princípio, são pessoas bem politizadas. Quando uma pessoa não é politizada e sente queimar a necessidade de ir, é porque a mensagem tá chegando, e é isso que eu quero que o quadrinho fomente, a ideia de que você pode brigar pelo que você acredita”, completa o artista.
Durante a quarentena, P.J Kayowá começou a desenvolver uma história com uma pitada de inspiração na pandemia. “Trato Sujo” apresenta uma sociedade que foi abalada por um “grande evento” e se dividiu em duas. Uma delas mudou os hábitos para se adaptar ao ambiente e a outra manteve os costumes, mas sofreu alterações genéticas corporais para poder sobreviver. “Essa obra, foi resultado da quarentena mesmo. Como tudo parou, resolvi fazer o quadrinho para me divertir mesmo”, relata.
Júlio Magah é outro escritor de HQs que transformou a crise causada pela Covid-19 em ideia para uma nova história. “Eu estou com uma ideia de ficção científica para usar como fundo um vírus letal, fazendo um paralelo com o que está acontecendo com a gente. Mas ainda está muito no embrião disso”, diz Magah.
Atualmente ele trabalha com uma série infantil chamada “Os Espertinhos”, e apesar da obra tratar de temas mais leves para as crianças, o autor achou importante incluir assuntos mais delicados do cotidiano no material. “Já cheguei a abordar a pandemia de forma bem sutil, não peguei tão pesado porque quem está lendo uma HQ mais leve quer fugir da realidade, não posso jogar a realidade nele, então fiz de forma mais sutil”, explica.
Magah comenta que a dinâmica do isolamento social acelerou o processo de virtualização das histórias em quadrinhos, tanto para consumidores, quanto para artistas. Segundo ele, “já havia uma tendência das coisas caminharem para o online. Webcomix, sites de crowdfunding (financiamento coletivo), colaborações com a editora, em que você não precisava mais ir presencialmente.”
Embora tenha gerado inspiração para novas histórias, a pandemia também prejudicou alguns artistas independentes, na medida em que diversos eventos com foco em quadrinhos não aconteceram ou tiveram a dinâmica modificada, para respeitar as medidas de mitigação da disseminação do novo coronavírus. A CCXP (Comic Con Experience), que era realizada em São Paulo, aconteceu de forma online no ano passado, assim como a FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos), de Belo Horizonte.
O desenhista e escritor Orlandeli chama atenção para a importância destes festivais para os quadrinistas nacionais. “Nós tínhamos eventos, lançamentos, e toda essa programação se perdeu. Atrapalhou a parte financeira. Você vende muito em evento, oficinas e palestras. A gente não vive só da renda do quadrinho, mas sim de todo o universo dos quadrinhos”, pontua.
Além de ser responsável por obras como “Chico Bento: Arvorada” e “Os Olhos de Barthô”, Orlandeli foi chargista por 18 anos. Pelo Instagram, ele posta artes sobre os mais diversos assuntos. De acordo com desenhista, as charges são quase uma necessidade.
“Dependendo do que acontece, parece que se eu não fizer uma charge eu não vou conseguir trabalhar. Tenho essa necessidade de colocar o meu olhar sobre aqueles fatos. Tempos difíceis têm que ser usados para criar. Talvez você crie coisas que jamais pudesse criar em uma situação mais confortável”, relata.
Para Orlandeli, o que ficará de 2020 para as próximas produções será a negação de algumas pessoas como forma de enfrentar as crises. O quadrinista expõe que o que mais o impactou “é como que algumas coisas que parecem obvias não são tão obvias para outras pessoas. Testemunhamos uma negação ao desconforto. Isso pode aparecer de forma mais indireta nas próximos trabalhos”.
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