Medo dos mortos ou dos vivos? Passeio mal-assombrado em SP mescla mistérios com a história do Brasil
Ponto de partida: Cemitério da Consolação!
01/11/2023 09h30
É noite de sábado quando vejo o ônibus estacionado na rua. Reparo que o veículo está parado ao lado da entrada da mais antiga necrópole em funcionamento de São Paulo, o Cemitério da Consolação. Dois ‘fantasmas’ me recebem. Sento na poltrona no meio do ônibus, pronto para começar a experiência intitulada de “SP Haunted Tour”.
Apesar de ser 21h30 de um sábado, o veículo está lotado. As pessoas aguardam a promessa do city tour: a contação de lendas urbanas e tragédias que envolvem a capital paulista.
Já com o ônibus em movimento, as figuras que deram as boas vindas aos visitantes se apresentam como “Angelo” e “Ethernya”, ao mesmo tempo que contam curiosidades sobre o Cemitério da Consolação. Ali, estão enterradas personalidades como Tarsila do Amaral e Monteiro Lobato, além de abrigar o mausoléu da família Matarazzo, o maior da América Latina.
Cemitério da Consolação - Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
Conforme conta “Ethernya”, foi inclusive na rua 17 do cemitério que Oswald de Andrade se casou com a escritora Patrícia Galvão, a Pagu, em 1930, diante do jazigo do pai do escritor.
Durante o trajeto, as pessoas olham atentas ao ‘fantasma’ “Angelo” explicando a diferença de terror e horror, que enquanto o primeiro afugenta o segundo paralisa.
“Todos os dias da nossa vida nós morremos de alguma coisa”, reflete o ‘fantasma’ “Angelo”.
Televisores do ônibus com imagens do incêndio do Edifício Joelma - Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
O que falo a seguir pode parecer invenção, mas deixo claro que aqui prezo pelo teor jornalístico do texto em questão. Isso porque começo a sentir um cheiro de queimado. Pergunto a duas pessoas sentadas próximas se também sentiram o cheiro forte e incômodo. E respondem que sim, um homem que estava com a família diz “é do atrito dos pneus”. Por coincidência ou não, o passeio continua e o ônibus chega ao Edifício Joelma.
No local, um incêndio, em fevereiro de 1974, provocou a morte de 187 pessoas e deixou mais de 300 feridos. “Ethernya” conta ainda que no mesmo lugar onde o prédio foi construído, ocorreu o chamado “crime do poço”. Conforme o notório caso de assassinato dos anos 40, um professor da USP matou a mãe e suas duas irmãs e as jogou num poço construído por ele mesmo.
Descaso com a cultura
Ao chegar no casarão de Sebastiana de Melo Freire, também conhecida como Dona Yayá, os guias do passeio contam as tragédias enfrentadas pela mulher da família de elite paulistana.
A partir desse momento, o city tour começa a ganhar um viés mais crítico e denunciativo sobre as condições de prédios importantes da cidade. A anfitriã “Ethernya” destaca para o descaso com a cultura, já que embora a casa de Yayá tenha sido transformada num centro cultural, a falta de verba prejudica a preservação e o funcionamento do espaço.
O mesmo comentário foi feito nas proximidades do Teatro Cultura Artística, que em 2008 sofreu um incêndio de grandes proporções e que até hoje permanece fechado para reconstrução. O enorme painel do pintor Di Cavalcanti foi uma das únicas partes da estrutura que resistiu ao incêndio.
Theatro Municipal de São Paulo - Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
Nas caixas do som do ônibus toca “O Guarani”, de Carlos Gomes. O som anuncia a chegada ao Theatro Municipal. Os guias lembram que o local foi palco de um dos mais importantes eventos das artes no Brasil: a Semana de Arte Moderna, em 1922.
Quando um dos ‘fantasmas’ começa a contar que “Anhangabaú” significa, em tupi, rio ou água do mau espírito, me dou conta que estou no centro da cidade e são mais de dez horas da noite. Muitas das ruas estão completamente vazias. Vez ou outra passam pessoas sem-teto ou então diversos carros da polícia.
O número de assaltos na região também é elevado. Segundo levantamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o número de roubos deste ano na região central da cidade foi o maior já registrado desde 2001.
Negros à margem da sociedade
Catedral da Sé - Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
O ônibus estaciona na Praça da Sé. Ao lado da Catedral Metropolitana, “Ethernya” conta a história de Joaquim Pinto de Oliveira, mais conhecido como Tebas. Negro e ex-escravizado, ele trabalhou em diversos projetos da cidade, como a própria antiga Catedral. Entretanto, nas palavras da anfitriã, o arquiteto acabou sendo historicamente submetido ao esquecimento e suas ações invisibilizadas.
Na Catedral da Sé também estão enterradas diversas figuras consideradas importantes para a história de São Paulo, como todos os arcebispos da Arquidiocese desde 1745. E a guia ainda enfatiza: “não há nenhuma figura negra aqui enterrada”.
Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
Próxima parada, Liberdade. Por mais que o bairro seja conhecido por abrigar a maior comunidade japonesa fora do Japão, o local foi originalmente lar de negros ex-escravizados.
Muita gente não sabe desse fato, mas até a origem do nome do bairro remete ao cenário da escravidão. Numa época em que havia pena de morte no Brasil, o militar negro Francisco José das Chagas, conhecido como "Chaguinhas", liderou uma revolta e foi condenado à forca. A história conta que, devido a corda ter arrebentado três vezes, as pessoas pediam pela sua “liberdade”.
Não à toa fica também ali localizada a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados.
Bairro da Liberdade - Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
Não é só coisa do passado
Após histórias sobre os crimes envolvendo o “Restaurante Chinês”, o Edifício Martinelli e o Mosteiro de São Bento, que segundo “Ethernya” foi construído por um bandeirante que “ficou rico matando indígenas e vendendo esmeraldas”, chegamos ao Pátio do Colégio.
Pátio do Colégio - Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
Em 1554, a cidade de São Paulo foi fundada ali. Um pouco depois de passarmos pelo “Impostômetro”, painel que indica em tempo real os impostos arrecadados pelo governo, os visitantes do tour puderam ver bem de perto da janelinha do ônibus as condições do Pátio do Colégio e, principalmente, de quem reside naquele lugar, já que são dezenas de moradores de rua.
“A desigualdade social não é só um problema da modernidade. Isso aqui é o puro resultado da invenção deste país. Fundado por pessoas da Europa que usaram o sangue de indígenas, de escravizados, de mulheres estupradas. Um país que teve seus tijolos fundados na escravidão. Um país que teve como princípios a estrutura patriarcal, machista, homofóbica e transfóbica. Um país que ainda preserva muito desses valores não poderia chegar em outro lugar”, afirma a ‘fantasma’ “Ethernya”.
Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
“Nós não somos culpados por isso. Nós somos responsáveis por sermos herdeiros dessa história, e a partir disso temos a responsabilidade de decidir o que fazer com esse problema que nos afeta”, enfatiza a anfitriã.
O olhar de quem viveu a experiência
Muitos dos visitantes conheceram a atração, que dura cerca de uma hora e meia, através de canais na internet ou por meio de vídeos que recentemente viralizaram nas redes sociais. Esse foi o caso de Fernando Felipe, que acompanha canais de terror e decidiu fazer a viagem para conhecer mais sobre a cidade.
“Os crimes são chocantes. Esse passeio é bom porque você conhece a história do lugar onde está morando”, afirma o jovem.
Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
Andrea Flores, corretora imobiliária que recebeu o tour de presente, também conta como foi a experiência:
“É inusitado, diferente de todos os outros tours que têm em São Paulo. Eles focam muito nas tragédias e nas origens, e nem sempre as origens são coisas boas. O que me chamou a atenção, inclusive que eles comentaram na narrativa, é a população que está abandonada. Para mim, o descaso foi o mais chocante de tudo”, destaca.
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Fernando, que veio do litoral de São Paulo, demonstrou indignação com o número de pessoas nas ruas sem assistência adequada e com pontos turísticos sem a devida preservação.
“Tem que pensar em alguma coisa para solucionar esse caos em São Paulo. Cada dia só aumenta mais e ninguém faz nada. Ninguém pensa numa solução e as pessoas ficam só olhando e dizendo ‘um dia a gente pensa e a gente faz’, e esse dia nunca chega”, aponta.
Questionada se pudesse definir em uma frase a experiência toda, Andrea não pensa duas vezes:
“É a triste história de como o Brasil foi construído”, finaliza.
Pátio do Colégio - Foto: TV Cultura / Silvio Júnior
Serviço
Data: todos os sábados, às 19h (ride 1) e 21h30 (ride 2).
Ponto de encontro: Rua Mato Grosso, altura do número 400 (portão do cemitério da Consolação) - Higienópolis - São Paulo - SP.
Valor: R$ 95,00 (venda de ingressos com antecedência).
Para mais informações basta acessar o site.
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