Não é novidade que a dependência do álcool é uma questão recorrente no Brasil. Uma bebida ali, uma aqui e, ao se dar conta, já se perdeu o controle. A data de 18 de fevereiro marca o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. E daqui a menos de duas semanas, estreia em São Paulo “Bárbara”, espetáculo que é uma 'dose de esperança' para quem convive ou luta contra a dependência.
Protagonizado por Marisa Orth, a nova temporada da peça começa em 1º de março no Teatro Bravos, localizado na zona oeste da capital paulista.
Em entrevista exclusiva ao site da TV Cultura, Orth chama atenção para o fato de que, mesmo com muitos casos próximos, a maioria das pessoas tem dificuldade em reconhecer o problema.
“Toda família brasileira tem. [...] O que mais se passa na peça é isso, o quanto é perto da gente a dependência alcoólica, o quanto você já tem amigos que são e que não sabem, o quanto você pode ser e se tornar e não se dá conta”, destaca a atriz.
Dados revelam que cerca de 4% da população no Brasil abusa do álcool e 5,6% dos brasileiros já feriram alguém ou se feriram após o consumo. Isso foi o que apontou uma pesquisa de 2023 do inquérito Covitel, feito junto à Organização Mundial da Saúde (OMS).
Outro levantamento do mesmo ano, do Centro de Informações sobre Saúde do Álcool (CISA), mostrou que 45% dos brasileiros ingerem bebida alcoólica em festas, eventos sociais e até mesmo em casa.
Foto: Divulgação
O espetáculo fica em cartaz até o dia 28 de abril. Nos anos anteriores, mais de 37 mil pessoas assistiram a peça em todo país.
“Se uma pessoa não começa a falar, não chama as outras”
A obra teatral é baseada no livro da jornalista Barbara Gancia, intitulado "A Saideira: Uma dose de esperança depois de anos lutando contra a dependência", de 2018. Na autobiografia, ela relata como foi lidar com a dependência que durou cerca de 30 anos e conta que transformar seus sentimentos em prosa foi uma forma que encontrou de se redimir.
“Eu quis traduzir isso para outras pessoas se identificarem e falarem ‘eu não estou sozinho’, porque é uma doença muito solitária. Eu me encontrava com vergonha, sem poder contar para os outros que eu estava vivendo isso”, explica Gancia.
Foto: Divulgação
É possível parar de beber e ser feliz!
A peça consiste em um monólogo e se inicia com um stand-up de humor. Aí você pode se perguntar, o que há de engraçado em um tema tão dramático como esse? A pergunta é logo respondida ao se dar conta que antes do adoecimento vem a “festa”. Isso porque a ingestão de bebidas geralmente está associada a momentos de alegria, de romance e de celebração.
“De fato beber é uma coisa gostosa. Eu não comecei a beber porque eu estava com problemas ou um drama existencial. Eu comecei a beber porque é gostoso para caramba. Quando eu ia socializar eu era tímida, e quando você bebe acaba se soltando mais”, revela Gancia.
Com o agravamento da dependência, ela conta como foi se tornando refém do álcool. Mesmo tendo produzido o livro anos depois de ter parado, o processo de escrita foi “dificílimo”, já que toda noite sonhava com as situações descritas na obra. Entretanto, ela deixa o recado claro: é sim possível parar de beber e ser feliz.
“As pessoas têm a ideia de que você para de beber e fica um sujeito sem graça, que para de ir para a festa e de ser engraçado. Eu dou risada o dia inteiro como antigamente. Depois que eu parei de beber eu tive êxito profissional, conheci a pessoa que eu casei, minha vida mudou, e mudou para melhor”, explica.
Vale destacar ainda que existe uma diferença entre o sóbrio e o abstêmio:
“O abstêmio para de beber porque alguém mandou e vai na festa e fala ‘todo mundo tá bebendo e se divertindo menos eu’, fica se lamentando. Já o sóbrio é quando você se conscientiza, ele já chega na festa e diz ‘graças a Deus eu não estou bebendo. Estou dando risada e estou na boa’”, esclarece a autora.
O que esperar da peça?
Em 2022, Marisa ganhou o Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Atriz em Peça de Teatro, considerada uma das maiores premiações do segmento no Brasil. Este foi o primeiro espetáculo solo de sua carreira.
Ao ser questionada qual o maior desafio do projeto, destaca que é estar sozinha em cena, tendo em vista que a responsabilidade também aumenta.
“É uma peça muito dinâmica. Eu rompo a quarta parede, falo direto com o público. Eu faço a dona da festa, a Marisa, o pessoal da clínica, os amigos. Fica mudando, para que o monólogo não seja enfadonho”, explica.
Por se tratar de uma recriação feita a partir do livro, a apresentação inclui ainda a primeira vez que a atriz ingeriu álcool, bem como amplia o debate para outras dependências.
“Abordamos a dependência de outras drogas, de comida, de relações tóxicas, de coisas que você acha que está muito gostoso mas que na verdade estão te levando para morte”, completa.
Falta de caráter?
Foto: Divulgação
Muita gente tem a errônea ideia de que beber em excesso é meramente uma questão de falta de caráter ou de que “quem bebe é tudo vagabundo”. Além disso, ambas as entrevistadas concordam que no Brasil é comum fazer vista grossa sobre o problema.
“A peça está fazendo as pessoas conhecerem mais o alcoolismo, pararem de beber ou a mãe não julgar o filho como uma pessoa de mau-caráter. Vendo que é uma doença, que precisa ter paciência, que precisa tratar e conversar a respeito”, explica a jornalista.
“Além de que nessa de ‘não fala’, você deixa de ajudar um monte de gente”, complementa Marisa.
Leia também: “Qualidade do audiovisual brasileiro se equipara com Hollywood”, avalia Rodrigo Santoro
Esse problema de saúde pública gera doenças crônicas, aumento de casos de câncer e impacta a sociedade de diversas formas. Desde 1997, o alcoolismo é considerado como uma doença pela OMS.
“Quem não vive não sabe, acha que é uma fraqueza de caráter, acha que é um problema moral, de falta vontade. E o Brasil é um país que tem um problema muito grave de alcoolismo e ninguém comenta, que pode ser associado ainda a casos de violência doméstica, de acidentes de trânsito e de trabalho”, reforça Barbara.
Também é importante mencionar que o uso do álcool pode atingir distintas faixas etárias, seja homem ou mulher, independente de classe social. Mas como mulher, a autora lembra de outros preconceitos associadas ao álcool.
“Homem quando bebe pode até ser visto como bobão, um fraco. Mas a mulher quando bebe é uma ‘puta’, ‘má’, ‘bruxa’, ‘desvairada’, ‘histérica’, a mulher não pode fazer bobagem porque ela é [bem] mais julgada”, afirma.
O impacto de “Bárbara"
Foto: Divulgação
Marisa afirma que em todas as sessões há relatos de pessoas que se identificam. Já tiveram casos inclusive de pessoas que estavam internadas em recuperação e saíram da clínica para ir assistir.
“Não tem uma sessão que não apareça alguém que não me emocione. Outro dia uma mulher estava chorando muito e ela falou ‘obrigada, você ajudou a perdoar a minha irmã”, conta.
Barbara Gancia passa pelo mesmo: “Ao menos uma vez por semana eu recebo alguma mensagem de alguém falando ‘eu parei de beber por causa do seu livro’ ou então porque foi ao teatro”.
Após explicar que o termo certo é “dependência” ao invés de “vício”, Barbara menciona que existem cinco categorias que não devem beber: grávidas, pessoas ingerindo determinadas medicações, aqueles que forem utilizar maquinário pesado (como o carro), menores de idade e pessoas com históricos de problemas com a bebida.
“Se você reconhece que tem um problema com álcool e acha que não vai sair dessa, você tem que saber que sempre tem um jeito de parar de beber, mas que é difícil você conseguir fazer isso sozinho. Você vai ter que contar com a ajuda das pessoas que você ama, das que você confia e, provavelmente, com o apoio de algum grupo, como os Alcoólicos Anônimos (AA) ou o grupo da sua igreja, por exemplo. É importante ter em mente: é possível parar de beber”, orienta a jornalista.
O Sistema Único de Saúde (SUS) também oferece atendimento gratuito especializado. Para mais informações do serviço, procure uma Unidade Básica de Saúde (UBS) ou os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) mais próximos.
No dia da estreia da peça, Barbara Gancia completa 17 anos sem ingerir bebidas alcoólicas.
Aos interessados, "Bárbara" já está com as vendas abertas. Os ingressos podem ser adquiridos pelo site ou pela própria bilheteria do Teatro Bravos.
Serviço
Temporada: 01 de março a 28 de abril de 2024 (não haverá sessões em 05,06 e 07 de abril);
Horários: Sextas-feiras e sábados, às 21h; domingos, às 18h;
Local: Teatro Bravos -Complexo Ache Cultural - (Rua Coropés, 88 - Pinheiros);
Classificação etária: 14 anos.
Leia também: Conceição Evaristo é eleita imortal na Academia Mineira de Letras
REDES SOCIAIS