Esporte

Transexuais no esporte profissional: até onde os questionamentos são válidos?

“A verdade é que a gente presumiu que teria um benefício, o que não está acontecendo”, aponta médico endocrinologista


12/09/2022 09h27

Muito se questiona a respeito do espaço de mulheres e homens transexuais no esporte profissional. A presença da jogadora Tifanny Abreu, do Osasco, na liga feminina de vôlei, por exemplo, já foi o centro de diversas polêmicas. O site da TV Cultura buscou diversos especialistas no assunto para sanar dúvidas a respeito do tema.

Uma pesquisa desenvolvida em 2020 pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp), até então inédita na América Latina, aponta que, no Brasil, há cerca de 4 milhões de pessoas que se consideram transgêneras ou não-binárias. Em números percentuais, esses dados correspondem a 1,9% da população do país.

Apesar de não existirem dados oficiais, é possível afirmar que a porcentagem de transexuais dentre todos os atletas profissionais no Brasil é significativamente menor. Esse fato evidencia que essa parcela da sociedade ainda sofre preconceito. Afinal, até onde os questionamentos sobre o tema são válidos?

Existem vantagens?

Para o médico endocrinologista Vinícius Bonisson, uma suposta vantagem física esperada por parte da comunidade científica ainda não pode ser observada na prática. “A verdade é que a gente presumiu que teria um benefício, o que não está acontecendo”, aponta o profissional, que também é nutrologista esportivo.

Tricampeã mundial pela seleção brasileira de futsal e campeã brasileira no futebol pelo Corinthians, Marcela Nascimento Leandro se tornou Marcelo. O atleta iniciou seu tratamento hormonal e assumiu sua transição de gênero aos 31 anos de idade. Em entrevista exclusiva, ele dá sua visão sobre o assunto.

“De acordo com os estudos que existem até o momento, não é provado que haja alguma vantagem. Mulheres trans têm um controle mais rigoroso com a questão do nível de testosterona, tem que estar baixa. Do contrário, no caso dos homens trans, não vejo ninguém para dar um exemplo agora, mas tem que haver um controle também. Então não acho que as mulheres trans têm vantagens, e os homens trans têm menos vantagem ainda. Não existem dados para poder comparar”, diz o jogador.

Marcelo também fala sobre o uso de hormônios, necessários para a manutenção de seu corpo masculino: “Essa questão é muito controlada. Você faz o uso da testosterona, que seu organismo não produz e você tem que fazer o uso injetável, mas é bastante controlado por meio de exames para manter aquela taxa de testosterona. Tem um período no qual você faz as aplicações. Como eu sempre fiz com acompanhamento médico, nunca senti essa questão de ‘ai, estou muito forte, o super-homem', foi bem tranquilo. Não tem uma fórmula mágica, que só toma e pronto. Tem homens que podem estar muito à minha frente na questão física, então isso é tudo da preparação de cada um.”

Antropólogo que estuda questões de gênero e sexualidade nos esportes, Wagner Xavier de Camargo opina que mulheres transexuais não tiram o espaço de mulheres cisgêneras e caracteriza que “essa questão da testosterona é um engodo. É um limite arbitrário. Essa linha é uma pura invenção.”

“As pessoas mais conservadoras falam assim: ‘Ah, atletas trans vêm para tirar o lugar de pessoas convencionais, e se deixarmos isso acontecer, teremos times inteiros de pessoas transexuais…’ Não vamos. Primeiro, para você entrar no esporte de alto rendimento, já é difícil, mesmo para quem não é trans. Quantos meninos que querem jogar futebol que viram, de fato, jogadores profissionais?”, questiona o doutor.

“O argumento (contrário aos transexuais dentro do esporte) é de que haveria alguma vantagem. Eu acho isso justo. É justo, por parte das atletas cis, perguntarem isso, se há algum tipo de regra, acho aceitável. A gente nasceu para questionar. Esses questionamentos são válidos. E a resposta definitiva, eu acho que a gente ainda não tem. O esporte é um ambiente muito saudável. A ideia é levar o máximo possível para o esporte, mas o esporte de alto nível não visa saúde”, aponta Vinícius.

“É difícil a gente não presumir essa vantagem, raciocinando de uma forma lógica. Mas a lógica não funciona na medicina. Não funciona na vida também. Existe uma série de fatores, e o principal fator é que esse homem (de nascença) não vai ter mais a testosterona, ele vai receber o hormônio feminino, então ele vai ter diminuição da força. A gente precisa ver como isso vai acontecer nos próximos anos. Então, por exemplo, se a gente abre esse precedente e começa a ter só medalhas olímpicas para mulheres trans, a resposta está dada. Mas não é isso que está acontecendo. É uma atleta ou outra que geralmente tem bons resultados”, conclui o médico.

Como acontece a transição?

Em seu relato, Marcelo explica o momento em que deixou o futebol feminino profissional para iniciar o tratamento: “Eu me entendi como trans em 2015, mas comecei com os hormônios em 2019. Foi quando eu me afastei do futebol e comecei meu tratamento com a testosterona.” Para ele, “os homens trans têm mais dificuldade para se adaptar”.

“Você começa a observar um ganho de massa muscular, de força… mas não é nada mágico, sozinho não faz nada. A gente faz um treinamento para manter esse ganho não só de massa muscular, mas de explosão, velocidade, porque além de você ter que fazer esse treinamento para melhorar essas aptidões físicas, teu corpo também leva um tempo para adaptar isso”, relata o atleta.

“Hoje, o ideal é a gente começar o tratamento antes que essa adolescente desenvolva as características sexuais do gênero com o qual ele não se identifica - por exemplo, se eu sou um menino e eu me identifico com sexo feminino, eu tenho uma identidade feminina. Eu já vou bloquear, com autorização dos pais, e aí quando tiver 18 anos, ele vai receber esses hormônios e vai ter um corpo bastante característico. Isso também vai ser importante lá no esporte”, explica Vinícius.

De acordo com o médico, responsável pela transição de diversos pacientes, “uma mulher trans vai receber os hormônios femininos. Se for um homem trans, ele vai receber os hormônios masculinos apropriados, nas doses fisiológicas. Isso é muito importante também, porque senão pode ter alguma vantagem também. Principalmente quando é testosterona.”

“Como homem você começa a receber o hormônio feminino, você vai ver que a sua força vai diminuir, só que assim, na nossa cabeça, ainda tem uma estrutura muscular masculina. Então a gente tem um pré-julgamento, mas na verdade, os trabalhos que têm hoje mostram que não existe. Em relação ao contrário, que seria os homens trans, eles têm desvantagem. É difícil você ver um atleta de ponta no outro lado, mas existem. A gente não pode presumir que tem vantagem, a gente precisa de mais estudos”, completa o endocrinologista.

Quais questões sociais estão inclusas?

Wagner alega que a inclusão de pessoas trans no esporte profissional “é recente”. Para ele, a questão se dá “numa onda contrária a um movimento muito conservador da sociedade”.

Politicamente, o antropólogo acredita que o ato se trata de uma briga pelos direitos da comunidade transexual. No tema, estão a luta pelo “direito da saúde, pelo direito a praticar esporte, pelo direito de passar pelo processo transexualizador, pelo direito à não-exclusão”.

“Esse aparecimento se dá, primeiro, porque a gente tem mais tecnologia e a divulgação de informação é muito mais rápida, e segundo, porque estamos nesse momento de luta pelo direito de fazer. ‘Estou lutando pelo meu direito de ser trans e estou lutando pelo meu direito de fazer tudo: ir ao shopping, andar de mãos dadas com meu namorado (a) e praticar esporte.’ Na questão amadora, já faz mais tempo. Lá, a questão era mais porque ‘apareceu’. Hoje, não é isso. É pelo direito de poder fazer alguma coisa”, argumenta.

Filho de outro jogador profissional, Marcelo começou cedo no esporte. “Quando eu comecei a andar, já tinha uma ligação com o futebol, assistia aos jogos. De Natal, aniversário, ganhava bola, chuteira”, conta. Ao falar sobre seu início nas categorias de base, ele também ressalta que atuou na modalidade masculina.

“Eu participava das categorias de base no masculino. Depois, troquei por um clube de futsal feminino, que era o único que tinha na cidade, porque eu não podia atuar nos campeonatos no masculino. Como eu só treinava e queria jogar, acabei indo para o futsal. Foi quando minha carreira começou. Com uns 14 anos, já tive a oportunidade de receber um salário para atuar em outros clubes”, conta Marcelo.

“Desde menino, sempre gostei muito de jogar futebol com os homens. Com uma certa idade, essa questão física pesa. A questão técnica, nem tanto. Até meus 12 ou 13 anos, eu atuava no masculino tranquilo. A partir daí, a gente já sente umas questões na parte física”, completa.

Segundo Vinícius, as discussões não podem se resumir apenas na identidade de gênero. O médico, no entanto, reconhece que as mulheres, cis ou trans, ainda precisam lutar pela igualdade.

“A mulher está lutando para ter uma igualdade de gênero. Aí chega uma pessoa que nasceu homem, que está vivendo um drama, e aí baseado nesse drama, baseado na vitimação, na pena. Isso é terrível, isso tira dignidade. Eu não posso olhar para essas pessoas com pena e falar ‘sim’ para tudo”, afirma.

A resposta seria uma liga específica?

Vinícius opina que, caso as mulheres transexuais comecem a ter vantagens sobre as mulheres cis, uma liga específica poderia ser criada. "Se um monte de mulheres trans começarem a vencer, eu acho que vai ter que criar uma categoria para elas", diz.

Marcelo não descarta a ideia a acredita que a iniciativa seria aceita, mas questiona se haveria atletas suficientes para a criação de um campeonato. "Vamos colocar a população geral. Desta população, você tira uma porcentagem que é trans. Desta porcentagem, você tira uma outra porcentagem que gosta de esporte e o pratica. Desta porcentagem de pessoas trans que praticam o esporte, você tira uma porcentagem menor ainda de pessoas que querem ser atletas. Como você vai organizar equipes, um campeonato? Posso estar equivocado, mas acho que pode não ter tantos atletas assim", explica.

Para Wagner, torneios destinados às mulheres e aos homens transexuais poderiam, inicialmente, ser uma solução. "Num primeiro momento, é uma espécie de edificação, como se você fosse construir o pilar de uma casa, de uma construção, desde a base. Então sim, acho que tem que ter associações políticas trans, esportivas, etc. Para brigar pelo direito de existir e fazer o que quiser. A partir do momento em que isso estiver consolidado, aí você abre. Nossa sociedade, por exemplo, ainda não está preparada", conclui.

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