A música clássica brasileira
Capítulo 3 da série "As 10 mais" – desta vez com a música brasileira, pelo maestro Julio Medaglia
04/07/2020 13h00
O Brasil e os Estados Unidos possuem percursos históricos paralelos e muito semelhantes. Mas, em termos de composições eruditas, nós possuímos 150 anos a mais de música original que eles. E, curiosamente, assim como a cultura brasileira anterior ao século XX foi feita por maravilhosos negros e mulatos – Machado de Assis, Castro Alves, José do Patrocínio, Teodoro Sampaio, André Rebouças, Aleijadinho e outros – na área musical os gênios de nossa criação também não tinham olhos azuis... O mais antigo documento musical encontrado na Bahia é datado de 1759 – período áureo do barroco europeu - e o compositor pertencia à uma “confraria de homens de cor”. Infelizmente seu nome não chegou a nossos dias mas apenas a partitura desse Recitativo e ária que vocês vão ouvir que homenageia importante figura da sociedade local da época.
Assistam a gravação desse recitativo e ária na voz da soprano paulista Marília Siegel:
Na segunda metade do século XVIII houve em inúmeras cidades brasileiras um expressivo surto de música clássica sobretudo religiosa. Na região do gold rush mineiro esse surto atingiu proporções enormes. Quando trabalhei com o professor Curt Lange – musicólogo alemão que descobriu esse precioso acervo musical silenciado por quase 200 anos –, encontramos na região de Diamantina confrarias de negros e mulatos com mais de 2.000 profissionais. Eram instrumentistas, compositores, maestros, copistas, cantores, construtores de instrumentos etc.
Ouçam parte de um Credo de Ignácio Parreiras Neves. Nota-se pela qualidade artesanal da escrita e pela beleza da música, que se tratava de excelente e tarimbado compositor, embora de sua autoria tenha chegado a nossos dias apenas essa obra.
Se em Minas Gerais se escrevia música como Händel e Vivaldi, no Rio de Janeiro, no início do século XIX um padre, filho de escravos, compunha como Haydn: José Maurício Nunes Garcia. Autor de expressiva e numerosa obra da área da música religiosa, deixou também inúmeros tratados teóricos. Sigismund Neukomm, compositor austríaco importante que esteve no Brasil, escreveu um artigo para o jornal da música de Leipzigonde apontava José Maurício como “o maior improvisador ao cravo do mundo”. Ouçamos de sua autoria um Laudate Dominum:
Haydn dizia: meu aluno mais talentoso é Beethoven. Mas, meu predileto é Sigismund Neukomm. Só que este compositor austríaco com mais de 700 obras era também político e, para muitos, espião. Como trabalhava direto com Napoleão e Talleyrand, acredita-se que ele tenha vindo dar com os costados no Rio por motivos não apenas musicais. Como Napoleão não gostava das relações de Portugal com a Inglaterra imagina-se que ele tenha vindo para cá para dar aulas de música a D. Pedro I e fazer sua cabeça para proclamar a nossa independência. Neukomm deu aula para D. Pedro e toda a nobreza, envolvendo-se com a música que se fazia por aqui nas ruas e terreiros. Compôs 70 obras aqui. Ao deixar o Brasil, declarou:
Aprendi a apreciar o ritmo com que bailavam os escravos em seus folguedos d’ África, graças aos quais conheci o lundu, dança de tal maneira sensual que sua mera visão nos traz o rubor às faces. Não me lembro de quantas vezes corei diante do encontro daqueles corpos suados, dos quadris que se entrechocam na síncopa da umbigada... Nos trópicos, o clima escaldante, que aquece trocas corporais, lascivas, obscenas, transforma, fatalmente uma dança em outra coisa.
Sigismund Neukomm viveu aqui 5 anos e pouco tempo antes de D. Pedro proclamar nossa independência voltou para Paris escrevendo a canção: Addio: Ca-pri-cór-nia, carioca, Corcovado, vado, vado, addio...
D. Pedro I tornou-se um excelente músico. Tocava cravo, clarineta, fagote e violoncelo. Muitas vezes ia tocar clarineta na orquestra de negros de São Gonçalo onde havia um conservatório para escravos e alforriados. D. Pedro I foi também excelente compositor escrevendo no estilo meio Rossini/Mozart. Vejam que preciosidade este Credo de sua autoria para orquestra, coro e 3 solistas vocais:
Mas, subindo um pouco mais no século XIX, vamos encontrar um “pardo”, filho de índia com mulato nascido aqui em Campinas: Antônio Carlos Gomes. Depois de fazer seus estudos no Rio com Francisco Manuel da Silva, autor de grande obra sinfônica e do nosso Hino Nacional, Gomes teve aulas também com um professor italiano. Depois de compor 2 óperas com texto em português com sucesso, atraiu as atenções de D. Pedro II, que o enviou a Milão para completar seus estudos. Lá integrou-se para valer na vida musical da cidade, inclusive com os membros da vanguarda cultural local, estreou dois musicais em dialeto milanês de enorme sucesso.
Em 1870 consegui encenar sua ópera O Guarani no maior templo mundial da ópera, o teatro Alla Scala de Milão onde obteve retumbante sucesso. Verdi para de compor nessa época e nosso mulato tornou-se o autor mais executado no Scaladepois de Verdi, e nos próximo 15 o autor com o maior número de estreias nessa casa. Todos os grandes intérpretes cantaram suas óperas. Aqui, um trecho de O Guarani com Caballe e Carreras:
Se quiserem assistir O Guarani encenado e completo regido por mim com os 300 artistas da Ópera Nacional da Bulgária transmitido por diversos países europeus, vejam neste vídeo no Youtube:
Mas, se Verdi disse a Gomes algo como “você vai seguir minha obra”, o que veio a ocorrer, outros autores brasileiros no final do século XIX eram mais chegados ao drama lírico de Wagner. Figuras como Alberto Nepomuceno, Leopoldo Miguez ou Francisco Braga idolatravam o mestre alemão como dezenas de autores europeus. Francisco Braga, um humilde mulato da Zona Norte do Rio, depois de esforços descomunais, foi à França onde se tornou aluno destacado de Massenet no Conservatório de Paris.
Sua paixão por Wagner o levou a morar em Dresden para ficar bem próximo da aura wagneriana. Episódio Sinfônico nos mostra essa influência:
Alberto Nepomuceno, um cearense arretado foi estudar na principal escola de música de Berlim, por seu amor a Wagner. Fez curso de composição e ao encerrar seus estudos “mit Auszeichnung” com distinção, regeu um concerto com a Filarmônica de Berlim com obras suas. Sua obra O Garatuja foi um poema sinfônico executado internacionalmente com grande sucesso – Richard Strauss a regia sempre –, revelava não só a qualidade da escrita como seu excepcional talento composicional.
Acontece que o maior compositor da Escandinávia, Edward Grieg assistiu Nepomuceno reger obras próprias em Berlim e ficou deslumbrado com seu talento. O convidou para morar em sua casa na Noruega por algum tempo. Não só deu-lhe mais alguns conselhos, mas, sobretudo, convenceu Nepomuceno a criar uma música com as cores sonoras do Brasil – parando assim de copiar Wagner e outros mestres do universo sonoro centro-europeu. Nepomuceno deu uma virada estética em sua obra, passou a compor com elementos extraídos da música que ouvia pelas ruas do Rio de Janeiro, misturando ritmos “bárbaros” com o seu know-how composicional europeu, assim como atabaques, pandeiros e barimbaus com os Stradivarios das sinfônicas. Foi um escândalo! O resultado foi Batuque que vão ouvir. Com isso Nepomuceno passou a ser apontado por todos como “o pai da música nacional”.
Mas, quem acabou dando universalidade maior à essa ideia da miscigenação sonora brasileira/europeia, foi Heitor Villa-Lobos.
Villa não fez média com as culturas popular e folclórica brasileiras mas as abordou com uma visão crítica. Nela, nem o folclore “era puro” nem o arcabouço sonoro de origem europeia herdado estava presente em sua obra integralmente.
Ele criou um sarapatel cultural que atingiu uma universalidade sem igual, tornando-se o compositor brasileiro mais executado no exterior, mais do que qualquer outro autor erudito ou popular. Sua obra Choros Nº 10 é apontada pelos críticos internacionais como uma espécie de “Sagração da Primavera” brasileira. Nela nota-se sua grande capacidade de composição sinfônica contemporânea, o melodismo sentimental latino/português, fonemas indígenas e uma infraestrutura rítmica agressiva afro-brasileira. Uma miscigenação étnico-cultural sem igual. Aqui pela Sinfônica de Londres e coral no Royal Albert Hall (quem assistiu O homem que sabia demais, antológico filme de Hitchcock vai matar saudade do local).
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Julio Medaglia é maestro, arranjador e apresentador do Fim de Tarde, programa que vai ao ar de segunda a sexta-feira, às 17h, na Rádio Cultura FM de São Paulo.
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