O México afirma que meio milhão de armas entram no país vindo dos EUA todos os anos. Uma ação judicial contra os fabricantes americanos de armas poderá conter essa maré de armas?
Pouco antes do nascer do sol em uma manhã quente de sexta-feira em junho de 2020, homens armados esperavam por Omar Garcia Harfuch, o chefe de segurança da cidade, então com 38 anos, no bairro nobre de Lomas de Chapultepec, na Cidade do México.
O que aconteceu em seguida foi capturado pelas câmeras de segurança e de celulares de transeuntes aterrorizados: o rajar de balas enquanto dezenas de pistoleiros fortemente armados, alguns vestidos como trabalhadores de obras civis, bloqueavam seu caminho com um caminhão e abriam fogo.
"Naquele momento eu sabia que tínhamos sido emboscados", disse Harfuch posteriormente ao jornal espanhol El País. "Depois eu senti o primeiro tiro atravessar o para-brisas."
Quando o tiroteio terminou, ele havia sido baleado três vezes. Três outras pessoas — dois guarda-costas e uma mulher inocente vendendo lanches — morreram.
A localização e o alvo da emboscada são anomalias notáveis na sangrenta guerra às drogas do México. Mas as armas recuperadas depois do tiroteio não são: rifles de precisão Barrett calibre 50, pistolas e armas militares.
Todas são produzidas e vendidas por fabricantes de armas com sede nos EUA.
O ataque contra Harfuch, juntamente com centenas de outros incidentes, agora é parte de uma ação movida pelo governo mexicano contra fabricantes de armas e atacadistas com sede nos EUA, incluindo nomes famosos como Smith & Wesson, Beretta, Colt, Glock e Ruger.
A ação, movida em um tribunal federal em Massachusetts — onde várias das empresas estão sediadas — argumenta que a "invasão" de armas ilegais no México "é o resultado previsível das ações deliberadas e práticas comerciais dos réus".
As empresas argumentam que o México não tem como comprovar que a violência descrita no processo é culpa delas. As companhias alegam que a lei dos EUA as protege da responsabilidade pelo uso indevido de seus produtos.
Esta semana, serão ouvidos argumentos de ambos os lados para que um juiz decida se o processo vai seguir adiante.
Embora especialistas duvidem de que o processo atinja seus objetivos principais — indenização de US$ 10 bilhões, o fim de práticas de marketing "inflamatórias" que supostamente apelam a criminosos e a criação de tecnologia de segurança "inteligente" — a iniciativa já serviu como um golpe publicitário para o governo mexicano.
Mais de uma dúzia de Estados americanos — incluindo Califórnia e Nova York — expressaram seu apoio ao caso do governo mexicano, assim como advogados representando Antígua e Barbuda e Belize.
O caso está gerando atenção para um problema que o México diz ter sido ignorado há muito tempo pelos fabricantes e pela maioria dos americanos.
"Isso não afeta apenas o México", disse Guillaume Michel, chefe de Assuntos Jurídicos da embaixada do México em Washington, à BBC. "Também tem consequências para os EUA."
Um problema nos dois lados da fronteira
Para quem está na linha de frente da guerra às drogas no México, a onipresença de armas fabricadas nos EUA tem sido um problema há muito tempo. A polícia mexicana diz que criminosos e gangues nas cidades fronteiriças dos EUA têm acesso imediato a armas compradas e contrabandeadas através da fronteira.
"As medidas de segurança implementadas na fronteira são quase uma piada", disse Ed Calderón, ex-policial de Tijuana, do outro lado da Califórnia, e especialista no submundo do crime mexicano.
"A fronteira é porosa", diz ele. "As pessoas — podem até ser mulheres e homens velhos — caminham ou dirigem pela fronteira diariamente e podem acumular um estoque que rivalizaria com qualquer exposição de armas do Texas. É fácil conseguir uma arma ou rifle no México."
A Guarda Nacional do México — que é a grande responsável por conter o fluxo de armas para o México — não pôde ser contatada para comentar. Autoridades mexicanas em vários níveis de governo, no entanto, vêm prometendo reprimir o fluxo de armas que atravessam a fronteira, referindo-se ao esforço como uma "prioridade nacional".
Esses esforços volta e meia produzem grandes apreensões de armas e prisões. Somente entre 1º de janeiro de 2019 e janeiro de 2021, a rede Milenio Televisión informou que 1.585 pessoas foram detidas por tráfico de armas, mais de 90% das quais eram cidadãos dos EUA.
No mesmo período, dados oficiais compilados pelo Stop US Arms to Mexico — um projeto que visa reduzir as armas ilegais no país — mostram que 11.613 armas foram apreendidas pelo Exército, uma pequena fração do que se acredita estar nas ruas do México.
Uma única batida no início de março deste ano perto da fronteira com os EUA apreendeu mais de 150 armas e quase três milhões de cartuchos de munição de um esconderijo de um suposto cartel.
Os arsenais dos grupos criminosos, disse Calderón, são muitas vezes comparáveis aos dos militares mexicanos e muito superior ao das forças policiais locais.
"É horrível para o moral", disse ele. "Conheci policiais municipais que têm mais experiência de combate do que qualquer força especial. Mas há um sentimento de abandono, de eles não terem o que precisam."
Calderón afirma que muitas armas dos EUA são vendidas com decorações e especificações ao gosto dos membros do cartel mexicano, como AK-47s banhados a ouro ou pistolas com gravuras representando os conhecidos "Narco Saints" ou Santa Muerte, uma santa popular da morte. Essas decorações são muitas vezes feitas por vendedores privados baseados nos EUA que, segundo ele, atendem especialmente ao submundo do crime mexicano.
"Elas estão à venda abertamente", disse ele. "É um símbolo de status dentro de certos elementos dos cartéis — como um distintivo de honra."
Também não há lei nos EUA que criminalize a venda de armas com tais condecorações.
Autoridades mexicanas dizem que os regulamentos de armas de fogo muito diferentes são a raiz do problema.
O México tem apenas uma loja de armas — uma estrutura semelhante a uma fortaleza em um complexo militar da Cidade do México que exige que os compradores forneçam uma papelada enorme e se submetam a cansativas verificações de antecedentes que podem levar meses.
As rigorosas leis mexicanas exigem que as armas sejam registradas junto ao governo federal e limitam seu tipo e calibre.
Mas ao norte da fronteira, conseguir uma arma é muito mais fácil. Autoridades mexicanas acreditam que uma grande parte das armas com destino ao Sul são compradas legalmente por "compradores laranja", que as passam ilegalmente para criminosos.
Em outros casos, as armas são compradas sem registro de vendedores particulares em feiras de armas em Estados como Texas ou Arizona, evitando verificações de antecedentes.
Autoridades mexicanas argumentam que o fluxo constante de armas dessas fontes é o principal fator de violência no país, onde cerca de 33 mil pessoas foram assassinadas apenas em 2021.
"Isso tudo é tráfico ilícito", disse Michel. "Não existe nenhum mecanismo comercial e legal que permita a entrada de tais quantidades de armas no México."
Os esforços do governo mexicano se tornaram mais um elemento no debate sobre armas nos EUA, onde uma minoria politicamente engajada — proprietários de armas e defensores dos direitos de armas — está em conflito há décadas com ativistas que pressionam por restrições mais rígidas à propriedade e às regras de compra.
Ativistas dos direitos das armas, apoiados por um poderoso lobby de armas de fogo, argumentam que as restrições violam a Segunda Emenda da Constituição dos EUA, que dá aos cidadãos o direito de possuir e portar armas.
Advogados dos fabricantes e lobistas de armas dos EUA vinculam explicitamente o processo do México aos direitos constitucionais dos americanos.
"Não cabe ao governo mexicano decidir como as armas de fogo são vendidas legalmente nos EUA, principalmente quando os cidadãos americanos têm um direito constitucional fundamental", disse Lawrence Keane, vice-presidente sênior e conselheiro geral da National Shooting Sports Foundation, um grupo comercial que representa a indústria de armas de fogo dos EUA.
"É o comércio legal de armas de fogo que possibilita o exercício desse direito para os americanos", acrescenta.
Keane rejeita as alegações do México de que os fabricantes podem ser responsabilizados pela violência no México.
O governo mexicano "deveria estar em um tribunal mexicano, buscando justiça contra esses cartéis", disse ele.
"E não deveria estar entrando com uma ação frívola em um tribunal federal dos EUA, tentando culpar os fabricantes que cumprem a lei por sua falha em proteger seus cidadãos."
Autoridades mexicanas insistem que não estão buscando uma revisão da Segunda Emenda ou questionando os direitos dos americanos de comprar e possuir armas.
O processo é sobre buscar reparação por "práticas negligentes dessas empresas", diz Michel.
Nenhuma das empresas citadas no processo respondeu aos pedidos de comentários da BBC.
Uma vitória de relações públicas?
Especialistas admitem que as chances de sucesso legal são pequenas — mas o processo é importante mesmo assim por seu simbolismo.
"Ele envia um sinal de que não se deve fazer mais negócios como sempre se costumou fazer", disse Arturo Sarukhan, embaixador do México em Washington de 2007 a 2013, à BBC.
Ioan Grillo, um autor do livro Blood Gun Money: How America Arms Gangs and Cartels(Dinheiro de Arma de Sangue: Como a América Arma Gangues e Cartéis, em tradução livre), concorda.
Grillo, cujo trabalho é citado em documentos judiciais, disse que viu mais debate sobre armas traficadas pelos EUA nos últimos meses do que nas duas décadas em que trabalhou cobrindo o México.
"O processo meio que coloca isso na agenda", disse ele, então a questão "não é tão simples quanto ganhar ou perder" no tribunal.
"Quando há um processo como esse, ele começa a forçar e mudar os parâmetros. As empresas de armas já vão ter que tentar se defender", disse Grillo. "Isso inicia um vai e vem e os obriga a começar a olhar para essas coisas. Elas não podem simplesmente ignorar o debate."
Mas Calderón, o ex-policial de Tijuana, não ficou impressionado com essa suposta vitória de relações públicas.
"Eu não vejo isso realmente fazendo nada além de marcar pontos políticos para ambos os lados", disse ele. "O governo do México tem uma grande responsabilidade de policiar sua própria fronteira. Eles militarizam a fronteira quando uma caravana de migrantes passa, mas não fazem nada para impedir que milhares de cartuchos de munição e milhares de rifles se movam de norte a sul. Acho que ninguém realmente se importa com isso."
E a grande quantidade de armas de fogo já presente no México significa que pouco pode ser feito para conter a violência, diz Alejandro Hope, ex-oficial de inteligência mexicano.
"Já existem talvez 15 milhões de armas de pequeno porte em mãos privadas no México", disse ele. "Mesmo que amanhã paremos completamente o fluxo de armas, já há armas suficientes para manter um alto nível de violência."
"Estou muito cético de que isso possa ser controlado pelo lado da oferta", disse Hope. "Duvido que haja algum impacto a curto prazo."
Mas, pelo menos, disse ele, "isso mostra o custo que o tráfico de armas tem para o México".
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