Até onde vão os limites dos quadrinhos? Não falo aqui dos limites físicos – a Internet os expandiu imensamente, como mostram os webtoons (criados aproveitando o scroll infinito). E mesmo os quadrinhos impressos acabam tendo seus limites desafiados quando entram em cena mentes criativas como a do francês Pascal Jousselin (de “Imbatível”) ou do norte-americano Chris Ware (“Building Stories”).
A pergunta que abre este texto me veio quando lia “A Tragédia da Princesa Rokunomiya”, de Kuniko Tsurita (ed. Veneta, tradução de Alice Nogami). São quase 500 páginas, uma coletânea de histórias curtas que foram publicadas entre 1965 e 81.
Kuniko publicou suas histórias em “Garo”, uma revista japonesa voltada para o público adulto (“gekigá”). Suas HQs mudam bastante entre uma edição e outra – exceto pelo seu estilo de arte, bem característico (e pouco convencional). A quadrinista não tinha personagens fixos, nem gêneros ou temas a que se prendesse. Ela podia mudar completamente entre um número e outro, e era exatamente o que fazia.
Um exemplo do dito acima: “Mulher”, de novembro de 1966, é uma história de 25 páginas sem uma única palavra, uma espécie de fábula muda que reflete sobre o lugar de submissão da mulher na sociedade. A HQ seguinte, publicada apenas um mês depois, traz 18 páginas de um humor pastelão de uma artista (a própria Kuniko) fazendo de tudo para não pagar dívidas – inclusive, quebrando a quarta parede. Quantos personagens de quadrinhos dos anos 60, não só no Japão, mas mundo afora, sabiam estar dentro de uma HQ?
Sua história mais famosa, “Flight”, é um romance entre o casal que se conhece por acaso em um aeroporto. Há lapsos temporais – às vezes de anos entre as cenas -, mas você a história é narrada em ordem cronológica. Em “Money”, a protagonista está vivendo uma crise pessoal, mas as circunstâncias de cada dia – as pessoas com quem convive, os ambientes, as rotinas – são tão diversas que você se questiona se tem algo de fato acontecendo ou se tudo não passa de um delírio.
As diferenças entre uma história e outra podem dar a entender que elas não têm nada em comum, mas têm: elas testam os limites dos quadrinhos. Hoje talvez seja menos difícil uma série de histórias tão experimentais assim: pode ser um blog ou em um fanzine, por exemplo. Nos anos 60, era uma um ponto completamente fora da curva.
Kuniko, que morreu precocemente aos 37 anos, foi a primeira mulher a publicar na “Garo”, a maior referência a gekigás de então, e a primeira a virar colaboradora fixa da revista. “Só” isso já bastaria para a classificar como uma artista de vanguarda. Mas é pelo que apresenta – a ousadia dos temas, a experimentação na narrativa – que ela colocou seu nome entre os dos grandes artistas japoneses de quadrinhos. Talvez por isso seja tão interessante ler estas histórias com o olhar de hoje: ver onde ela foi revolucionária, em que momentos fez mais do mesmo e desfrutando de momentos que, até este ano de 2023, permanecem como raridades.
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