Fundação Padre Anchieta

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Um dos quadrinhos nacionais mais interessantes do ano passado saiu em novembro: Nos Olhos de Quem Vê (ed. HarperCollins , de Helô D’Angelo, é uma obra madura e sincera que faz uma reflexão profunda e necessária sobre beleza e autoestima.

Antes, uma pequena introdução sobre a autora: roteirista e ilustradora, Helô D’Angelo é a autora do ótimo “Isolamento”, livro que aborda, com inteligência e sensibilidade, a pandemia de covid por meio de suas consequências em um grupo heterogêneo de vizinhos. Embora ficcional, havia um enorme contato com a realidade ali, tocando em temas como radicalismo político e movimento anti-vacina enquanto retrata com fidelidade um dos momentos mais difíceis da nossa sociedade neste século 21.

“Nos Olhos de Quem Vê” não é ficcional nem pontual – suas reflexões autobiográficas são sobre temas que permeiam nossa sociedade, aparentemente, desde sempre. O prólogo dá o tom do livro: “A primeira vez em que me senti gorda de verdade foi aos 15 anos, quando tentei colocar um biquíni novo.” Dois desenhos de página inteira, colocados um ao lado do outro, trazem a dimensão do problema. Na página da esquerda, a primeira a ser lida, Helô D’Angelo descreve, com os olhos de hoje, como vê a adolescente que era aos 15 anos. Na página da direita, como ela se via naquele momento.

“Eu vejo que meu corpo era mais ou menos assim: cabelo lindo, os ossinhos à mostra, barriga malhada por causa da natação, a ‘gordura’ era sobrea de pele normal, altura [das pernas] nada demais, algumas manchas nas pernas.

Na página da direita, o comentário que vai ditar o tom sincero e crítico do livro.

“Mas eu me via assim: cabelo sem jeito, gorda, peluda, dentes horríveis, [pernas] grandes demais, manchas horrendas.”

É sabido que nossa autoimagem sempre difere de como somos vistos. Mas colocados assim, lado a lado por meio de desenhos e comentários sinceros, é chocante ver a distância entre a realidade e a autoimagem. E por que a maior parte das pessoas do mundo (pode me incluir aí) tem uma imagem tão subestimada de si próprio?

Obviamente, não há resposta fácil. E o caminho de Helô D’Angelo em busca desta resposta resultou no livro. As páginas de “Nos Olhos de Quem Vê” trazem reflexões que cutucam as feridas não para que elas sarem, mas para que nunca se repitam (e vão sarar sim, como consequência da compreensão do que as causa).

Pode parecer um livro “só” sobre beleza, e como certos padrões são impostas por meio de revistas de boa forma, comerciais televisivos e muito marketing. Mas vai além: há um questão muito presente – e tão importante quanto – que é a autoestima.

As pessoas reagem de formas diferentes a estímulos. E não tenho nenhum estudo científico que comprove o que vou dizer agora, mas posso afirmar que, ao meu redor, o intenso bombardeio de padrão de beleza jovem, rico, com 0% de gordura corporal e rosto de Brad Pitt ou Angelina Jolie gera uma eterna insatisfação. Uma pessoa comum dificilmente preencheria todos esses requisitos (duvido que os próprios Pitt e Jolie preencham), e essa sensação de não ser “esteticamente perfeito” gera algo muito mais do que desconforto. A eterna privação da beleza absoluta gera, em diferentes medidas, estragos na autoestima que impactam em como a pessoa se vê e até na maneira como se relaciona com os outros.

Os temas “autoestima” e “beleza” são complexos demais para serem abordados em uma única coluna, mas acho que vale a pena destacar só dois exemplos das reflexões que a Helô D’Angelo nos propicia:

- Ao ver a matéria “Aos 33 anos, Rihanna está está super conservada”, ela se pergunta: “Gente do céu?!! Trinta e três anos é velha?!!”

Trata-se de uma crítica, merecida, a sites de jornalismo ou de entretenimento que, talvez sem perceberem, propagam o padrão de beleza jovem, rico, com 0% de gordura corporal etc. descrito acima.

Em outro momento, comenta o momento em que, adolescente, passou a ter seios: “Expectativas: ser aceita pelas minhas amigas mulheres, ficar linda de decote, ser respeitada, usar belos sutiãs. Realidade: assédio, dor nas costas, assédio, gastar uma nota em sutiãs que não me servem 100%. (E assédio.) Ter seios se tornou, para mim, um horror. Um lembrete da minha vulnerabilidade e do quanto estava à mercê do mundo.”

Este é um momento (há outros no livro) em que as reflexões ultrapassam as questões de beleza a autoestima. Há ações que a sociedade, de uma maneira geral, tolera. Há outras em que agora, a passos lentos, começa a combater, como o assédio sexual. Limites que deveriam ser muito claros não são compreendidos, e atos ditos “inofensivos” por quem pratica são perpetuados.

Todas estas reflexões se entrelaçam na narrativa crítica e autocrítica de “Nos Olhos de Quem Vê”: uma falta de tolerância consigo mesmo, uma cobrança infinita e incansável por valores inatingíveis. Em alguns momentos, eu pensei comigo “que droga, eu cometi esse erro comigo, vou tentar não fazer mais isso”. Em mais momentos, infelizmente, eu pensei comigo “que droga, eu cometi esse erro comigo, vai ser difícil não evitar repeti-lo”.

Beleza, autoestima, sociedade desrespeitosa, cobranças exageradas. “Nos Olhos de Quem Vê” nos traz ótimas reflexões em um quadrinho de alta qualidade sobre problemas que, infelizmente, não devem ser resolvidos na velocidade que deveriam.