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Reprodução | 'Doonesbury'
Reprodução | 'Doonesbury'

Você já leu 'Doonesbury', de Garry Trudeau? Não se sinta culpado se não. Esta tira norte-americana até já saiu em jornais brasileiros, mas não fez muito sucesso por aqui. Uma busca por livrarias online como Amazon, Estante Virtual ou Rika nos traz um total de zero edição em português de Doonesbury, e o site Guia dos Quadrinhos também tem esse resultado.

Mesmo assim, vale trocarmos alguns parágrafos sobre esta HQ. Afinal, é uma das minhas HQs favoritas de todos os tempos. Há cerca de três anos, escrevi sobre ela no site Hábito de Quadrinhos, primo-irmão desta coluna - inclusive contando algumas histórias que reproduzo aqui. Escrevi na torcida de que alguma editora se mobilizasse e desse a nós, leitores, o presente de uma edição brasileira de um livro de 'Doonesbury'. Como não dei sorte e a tira continua relevante e atual, volto ao tema.

Reprodução | 'Doonesbury'

Garry Trudeau lançou a tira 'Doonesbury' em jornais americanos em 1970. Eram histórias diárias, engraçadas, que faziam um retrato da sociedade americana. Crítica e incisiva, por vezes anárquica, 'Doonesbury' manteve o ritmo até 2014 (com uma pausa de alguns meses), quando passou a ser semanal.

Não dá para resumir satisfatoriamente um universo tão complexo quanto o criado por Trudeau, mas vamos tentar. O protagonista inicial era o simpático universitário Mike Doonesbury, mas outros personagens foram surgindo e, de quando em quando, até assumindo o protagonismo.

Reprodução | 'Doonesbury'

O humor de 'Doonesbury' e, sobretudo, a inteligência de Trudeau criaram uma tira de tremendo sucesso. Ela atravessou décadas sempre retratando o americano médio, moldando-se ao que existia a seu redor. Não era a crítica pela crítica, algo tão rasteiro quanto "todo político é ladrão". A abordagem, certeira, fez com que se tornasse a primeira tira a ser laureada com o Prêmio Pulitzer na categoria "Editorial Cartooning" - nos mais de 50 anos anteriores, apenas chargistas foram contemplados.

Houve polêmicas, claro: tiras foram recusadas, (como uma que abordava o aborto ou outra que satirizava o escândalo sexual de Bill Clinton). Mas, de uma maneira geral, os comentários eram tão pertinentes, e profundos, que em alguns casos saíram dos jornais onde eram impressos e literalmente mudaram a realidade. Vou dar alguns exemplos.

Reprodução | 'Doonesbury'

Nos anos 80, taxistas, garçons e vendedores, entre outros trabalhadores de Palm Beach, na Flórida, eram obrigados a andar com certos documentos específicos. Empresários e afins, claro, não precisavam. Trudeau descreveu este fato em uma tira. O alcance de sua HQ já era tamanho que, algum tempo depois, a legislação local foi alterada e a bobagem foi deixada de lado. O nome da nova lei? Lei Doonesbury.

Mike Doonesbury tem um amigo desde que a tira foi criada: B.D., um patriota meio machão. Não dá para dizer que ele é bom ou mau: é humano, como todos os personagens da série. Em 2002, como todos sabemos, os EUA invadiram o Iraque. Isso era algo que estava ao nosso redor, incontornável para uma HQ tão ligada à realidade quanto 'Doonesbury'. Resultado: B.D. foi voluntário. Voltou para casa profundamente impactado, de tal maneira que impactou a relação com sua família - e quantos soldados não passaram por isso?

Reprodução | 'Doonesbury'

O Departamento de Defesa dos EUA, claro, leu esta sequência de histórias. Poderíamos supor que a chefia lá não gostou, pois mostrava o resultado negativo da guerra em um cidadão comum americano. Eles procuraram o quadrinista, mas por outro motivo: ofereceram ajuda caso quisesse se aprofundar no tema.

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Trudeau frequentou sessões de um centro médico do Exército voltado a atender veteranos amputados, como seu personagem (D.B. havia perdido um membro). As histórias com as sessões de D.B. neste centro são realistas e impactantes - e renderam ao artista a Public Service Commendation Medal, uma honraria do Exército Norte-Americano.

Reprodução | 'Doonesbury'

Minha história favorita é anterior a estas duas.

Trudeau criou, em 1972, Joanie Caucus. Não contente em ter mostrado seu divórcio, coisa rara à época, Trudeau a mostrou tentando estudar Direito - infelizmente, sem resposta alguma das universidades. Ela simplesmente não era aceita em nenhuma.

Até que Joanie foi aceita - em uma faculdade do mundo real, aliás. Sete (sim, sete!) faculdades norte-americanas escreveram a Trudeau dizendo que sua personagem havia sido aceita como aluna. Joanie virou, na HQ e no mundo real, aluna da Universidade de Boston - Trudeau recebeu a carteirinha de estudante dela, bem como, por três anos, toda a correspondência destinada a um aluno normal. Na data da formatura de sua turma, havia uma cadeira vazia destinada a ela na plateia em sua homenagem.

Reprodução | 'Doonesbury'

E... E foi criado um fundo que destinava US$ 100 mil a mulheres com mais de 30 anos que queriam estudar Direito. Fundo este, claro, batizado de Joanie Cacaus Exxon Fellowship Program.

'Doonesbury' é um quadrinho e tanto. Político, controverso, influente, incrível. Seria um golaço para nós, leitores, se recebêssemos uma obra, devidamente contextualizada, desta incrível série. Mike Doonesbury, não mais universitário, mas ainda muito simpático, seria ótima companhia para todos nós.

Reprodução | 'Doonesbury'
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