Coluna Hábito de Quadrinhos

O ótimo mangá que homenageia os mangás – e sua competitiva indústria


13/05/2024 07h18

Quando eu era criança, não era fácil achar mangás nas bancas aqui de São Paulo. O lançamento de “Akira”, de Katsuhiro Otomo, foi um advento: uma história adulta, envolvente, com uma arte incrível. Pena que era tão mais caro que as demais HQs à disposição. “Lobo Solitário”, de Kazuo Koike e Goseki Kojima, tinha as mesmas qualidades, mas outro defeito: a distribuição era péssima. Você achava um exemplar um dia, e a continuação dele, seis meses depois.

Hoje, o termo “mangá” não é, felizmente, restrito a nerds. Nem ele, nem muitos outros: “otaku”, “anime”, “Dragon Ball”, “One Piece”, “mangaká”, “shonen”, “shojo”... Dei uma olhada no site “Biblioteca Brasileira de Mangás” por curiosidade e descobri que a previsão é de que sejam lançados nada menos do que 74 mangás no Brasil só em junho. Setenta e quatro! Mesmo um colecionador que comprasse e lesse dois mangás por dias não daria conta...

Não é à toa. O Japão investiu demais na sua indústria de mangás. É um patrimônio nacional com um número enorme de artistas competindo entre si. Além dos clássicos, que já marcaram época e influenciam os de hoje (Osamu Tezuka, Riyodo Ikeda, Yoshihiro Tatsumi, Naoki Urasawa, os citados Otomo e Koike), sempre temos novos talentos surgindo. E nenhuma obra me mostrou as entranhas deste desta disputadíssima competição que é o mercado de mangás do que o ótimo “Bakuman”, escrito por Tsugumi Ohba e ilustrado por Takeshi Obata.

“Bakuman”, o mangá que homenageia os mangás, foi lançado originalmente entre 2008 e 2012 – no Brasil, a JBC lançou a coleção completa entre 2009 e 2013. Aliás, a editora a está relançando desde o ano passado – o número seis é previsto para o mês que vem.

Pois bem. “Bakuman” mostra a história de dois amigos, estudantes no colégio, que querem se tornar mangakás. Akito Takagi é um menino inteligente e extrovertido que quer se profissionalizar como roteirista. Seu amigo Moritaka Mashiro é um menino-prodígio da arte: sobrinho de um mangaká, é um ilustrador talentoso, interessado, versátil, veloz e estudioso dos quadrinhos.

Takagi e Mashiro querem fazer sucesso e atém sabem o tamanho da dificuldade – Mashiro era próximo do tio-mangaká e conhecia razoavelmente o meio. Mas se eles sabiam a tarefa hercúlea que tinham pela frente, eu não fazia ideia – e talvez poucos leitores de mangás aqui no Brasil façam.

As maiores revistas japonesas, como a 週刊少年ジャンプ, são coletâneas semanais. O período é curto, e os artistas têm de ser velozes. Mais do que isso: é estimulada uma competividade enorme entre eles mesmo. A cada semana, a editora realiza pesquisas entre os leitores, que classificam cada história. Se uma série, por exemplo, fica numa colocação fraca por algumas semanas seguidas, é cortada. Para ser considerada “de sucesso”, ela tem de estar frequentemente entre os primeiros mais bem avaliados. No pódio, por assim dizer.

A comparação com o “pódio” cai bem, mas o que vemos, lendo “Bakuman”, é uma competição que nos parece uma final olímpica de tão difícil. Inúmeros mangakás talentosos, cada qual amparado por uma equipe de editor e artistas-assistentes, disputando bravamente subir uma posição que seja no tal ranking semanal. Não basta ser veloz, tem de ser talentosos. Aliás, não basta ser veloz E talentoso: é preciso ser praticamente um “atleta do mangá”, um “campeão do nanquim”. Velocidade, talento, disciplina, fôlego, sorte...

E, se “Bakuman” mostra muito bem isso, não deixa de olhar para outros aspectos da vida dos aspirantes a mangakás. Há muito humor, comédia romântica e até drama – o tio-mangaká, workaholic que não conseguiu repetir o sucesso da primeira série, se suicidou. Ou seja, aspectos menos “belos” da indústria dos mangás são retratados: a cobrança, a fama, a dureza de lidar com resultados aquém dos esperados.

Mas, claro, o que predominam são as cenas que mostram a paixão dos aspirantes a mangakás. Takagi e Mashiro são simpáticos, esforçados, disciplinados – obcecados, talvez? A luta deles acaba nos atraindo, e acabamos torcendo para que a série faça sucesso. “Puxa, essa série não se firmou, quem sabe a próxima...”

E, claro, “Bakuman”, o mangá que homenageia os mangás, nos dá vontade de ler... mangás. Pode ser “Ashita no Joe - Em Busca do Amanhã” (o favorito de Mashiro), “Dragon Ball” (o predileto de Takagi ) ou qualquer outro. Outra série da dupla Tsugumi Ohba e Takeshi Obata, obviamente, também é uma ótima pedida – o trabalho anterior deles foi o ótimo terror “Death Note”. Os caras não são fracos...

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.

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