Há 30 anos, o talentoso quadrinista norte-americano Mike Mignola estreou seu maior personagem: Hellboy. Vermelho, chifrudo, com rabo e literalmente filho de um demônio, ele parece um vilão, mas cuidado: as aparências enganam. Este personagem, criado por autores consagrados no gênero de super-heróis, em um formato típico de histórias de super-heróis, realmente até parece um super-herói, mas cuidado: as aparências enganam.
Mas vamos voltar no tempo para entender a trajetória desta sombria criação. Mike Mignola criava fanzine aos 21 anos; aos 23, trabalhava como arte-finalista na Marvel; em 1985, aos 25, estreou como desenhista para a mesma editora. Ilustrador talentoso e com um estilo bem autoral, precisou de pouco tempo para ser chamado para projetos especiais nas duas grandes editoras de super-heróis.
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Mignola desenhou duas minisséries especiais para a DC entre 1987 e 88: “O Mundo de Krypton”, estrelada pelo Superman, e “Odisseia Cósmica”, com o azulão kryptoniano, Batman e outros entre os protagonistas. Em 89, ilustrou duas ótimas graphic novels: “Doutor Estranho & Doutor Destino: Triunfo e Tormento”, para a Marvel, e “Batman – Gotham 1889”, para a DC. Ambas tinham um pé no terror – a primeira incluía uma ida, literalmente, ao Inferno, e a segunda envolvia o serial killer mais conhecido de todos os tempos: Jack, o Estripador. E as duas foram, assim como “O Mundo de Krypton” e “Odisseia Cósmica”, sucessos.
Mignola já tinha um nome bem aceito entre os leitores e começou a trabalhar em um passo ainda hoje arriscado, mas, para a época, ainda mais: lançar um personagem autoral. E eis que veio ao mundo o demoníaco Hellboy.
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O aventureiro vermelhão e de queixo proeminente surgiu em uma minissérie em quatro edições lançada em 1994: “Hellboy - Sementes Da Destruição”. Embora já até tivesse trabalhado como roteirista em alguns trabalhos, estes foram poucos, e Mignola contou, para esta obra, com a experiência de John Byrne, com quem trabalhara em “O Mundo de Krypton”, cocriando o roteiro. O resultado ficou ótimo.
Em resumo, Hellboy era um misterioso bebê demoníaco encontrado pelo Exército norte-americano na Segunda Guerra Mundial. Seu nascimento envolvia invocações, magia, premonições, mentiras, maldições, profecias apocalípticas... Era difícil saber o que era verdade ou não. Seria ele, realmente, destinado a iniciar a destruição da Terra? Haveria bondade em seu coração parcialmente demoníaco?
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A história continua décadas depois, no tempo presente. Ficamos sabendo que Hellboy se tornou um agente para uma área secreta do governo americano que lida com ameaças sobrenaturais: fantasmas, demônios, bruxas, monstros. E que nestas décadas que se passaram ele já viveu muitas aventuras – e adquiriu muito conhecimento. Ele não é um excelente agente apenas por sua força, coragem e teimosia, mas também por sua experiência.
Esta minissérie foi o primeiro passo para a trajetória de Hellboy. Sua mitologia foi se construindo aos poucos: uma história curta publicada aqui, uma minissérie ali, uma edição especial de quando em quando, HQs ao lado de super-heróis como Batman, Starman e Savage Dragon.
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Estas doses homeopáticas de Hellboy, ainda que apresentassem cada vez mais o personagem, foram aumentando os mistérios ao redor dele. Citações aqui, memórias de personagens ali, tudo dava a entender que havia muito mais sobre o vermelhão do que o leitor conhecia. E havia mesmo.
Aos poucos, as HQs de Mignola foram cada vez mais se afastando do mundo dos super-heróis em que surgiu. Lendas sinistras, que já eram citadas desde o início, começaram a ficar mais e mais presentes. O terror, a fantasia, as portas abertas para mitologias menos conhecidas (o quanto você conhece do folclore eslavo?), o enorme carisma do protagonista e a linda e sombria arte de Mignola tornaram Hellboy um sucesso.
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Em 2004, fãs de Hellboy receberam um “prêmio”: uma ótima adaptação para o cinema, dirigida por Guillermo del Toro e estrelada por Ron Perlman, John Hurt e Selma Blair. O filme (“Hellboy”), e sua continuação de 2008 (“Hellboy II - O Exército Dourado”), foram ótimos. Respeitaram o lado fantasia e horror e trouxeram atores talentosos para os protagonistas, enquanto Del Toro (de “O Labirinto do Fauno”) conseguiu entregar um visual impressionante. Dois golaços, que ajudaram para apresentar os quadrinhos a novos leitores.
Mignola, hoje, nem sempre ilustra as aventuras de Hellboy, por vezes ficando a cargo apenas dos roteiros. Nomes como Duncan Fegredo e Alex Maleev, entre outros, mantêm o clima sombrio e misterioso, seguindo o script de Mignola. É diferente, claro – eu prefiro quando ele mesmo ilustra, mas não dá para negar que eles também têm suas qualidades.
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Mignola comemora, neste 2024, as três décadas de sua maior criação. Conseguiu um personagem que tem identidade própria: sabemos que vamos esperar histórias de terror, fantasia e ação, com um protagonista turrão. Também esperamos citações a lendas e folclores sombrios e interessantes. Este material tem saído no Brasil pela editora Mythos.
Em resumo, Mike Mignola conseguiu, com Hellboy, criar um universo próprio de aventura, horror e fantasia. E este mundo, tão autoral, nos abre as portas para diversos outros. Um ótimo feito de um belo – e sombrio!- quadrinho.
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Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.
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