Coluna Hábito de Quadrinhos

“É Solitário no Centro da Terra” é uma HQ soberba sobre o dificílimo tema da depressão


08/07/2024 19h00

É muito difícil falar sobre depressão. É delicado quando se descobre que alguém com quem você se importa está passando por isso. Há tratamentos, claro, mas, até onde eu sei, os primeiros passos não são fáceis. Pelo menos comigo não foram.

O tema depressão (e questões similares) sempre existiu nas artes. Filmes, músicas, livros, quadrinhos - autobiográficos ou não. Eu sempre me interessei pelo tema, e isso aumentou em 2014, quando recebi o diagnóstico. E talvez eu seja muito ranzinza, mas desde então, gostei de poucas obras artísticas que abordavam a depressão. Não só é um tema difícil de conversar ao vivo: é delicado também para ser retratado.

Essa introdução toda foi para dizer que adorei É Solitário no Centro da Terra, graphic novel autobiográfica da britânica Zoe Thorogood, que saiu no Brasil há poucos meses (editora Conrad, tradução de Andressa Lelli).

Thorogood é uma quadrinista jovem que havia acabado de fazer sucesso com “A Cegueira Iminente de Billie Scott”. “É Solitário...” é um livro autobiográfico sobre um período que cobre os meses que se sucederam a este sucesso e o início da pandemia de Covid-19.

Há alguns pontos memoráveis, para mim, em “É Solitário...”. O primeiro é a honestidade brutal, quase cruel, como Thorogood se retrata. Ficamos sabendo de sua solidão, depressão, pensamentos por vezes suicidas, infância difícil na escola (em que ela se enquadrava com os derrotados, párias, alvos de bullying). Notamos a dor com a qual ela reconhece a sua dificuldade em se conectar com o próximo, quem quer que seja ele – por exemplo, pai, mãe e irmão. E vemos a principal arma que ela tem em mãos para lidar com tanta depressão, tristeza, solidão: a imaginação.

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As cenas de memória são tristes de ler – e fáceis de se identificar. Acho que todo mundo teve bons e maus momentos na infância e na adolescência. Olhando agora, talvez não doam tanto. Na época, parecia não haver coração grande o suficiente para lidar com tanto sofrimento.

Thorogood é corajosamente honesta ao retratar certas passagens de sua vida. Algumas que devem ter sido incômodas só de lembrar, que dirá roteirizar e expor ao leitor. Mas ela seguiu em frente, e aí nós, que estamos com o livro em mãos, percebemos uma segunda “arma” de que ela dispõe (e talvez não tenha se dado conta): um enorme talento.

A jovem britânica não é uma quadrinista comum. Suas ilustrações são lindas, em todos os sentidos. Precisas, detalhadas e realistas, quando necessário, mas também fartamente criativas quando é preciso que sejam.

As ilustrações servem a um roteiro honesto e corajoso, ao retratar seus sentimentos e memórias, mas também criativo e inusitado em certas passagens. Thorogood não se prende a um modelo ou forma específica de narrativa: sua obra fisga o leitor por páginas com um estilo, e depois o estilo se reinventa para atender a outra linha de pensamento ou lembrança. Ela demonstra um ótimo domínio dos elementos dos quadrinhos, e não faz uso deles apenas para se exibir. Thorogood está fazendo uma reflexão difícil e intricado de um tema tabu, e, ao mesmo tempo, criando uma obra de arte de alto nível.

É difícil acabar a leitura de “É Solitário no Centro da Terra” como se nada tivesse acontecido. Pensamentos, reflexões e memórias ficam na mente do leitor, provavelmente puxando outros pensamentos, reflexões e memórias. O tema depressão – e várias outras questões emocionais – é enormemente complexo, e provavelmente nós, humanos que somos, já tenhamos cometido erros ao tratar pessoas que sofrem destes males (e similares). Talvez obras de arte magníficas como “É Solitário...”, aliadas a muitas reflexões e conversas, possam ajudar a lidarmos melhor com este tema. 

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Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.

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