Fundação Padre Anchieta

Custeada por dotações orçamentárias legalmente estabelecidas e recursos próprios obtidos junto à iniciativa privada, a Fundação Padre Anchieta mantém uma emissora de televisão de sinal aberto, a TV Cultura; uma emissora de TV a cabo por assinatura, a TV Rá-Tim-Bum; e duas emissoras de rádio: a Cultura AM e a Cultura FM.

CENTRO PAULISTA DE RÁDIO E TV EDUCATIVAS

Rua Cenno Sbrighi, 378 - Caixa Postal 66.028 CEP 05036-900
São Paulo/SP - Tel: (11) 2182.3000

Televisão

Rádio

Divulgação
Divulgação

Uma das aulas mais interessantes que tive na vida foi em um curso fora da escola e da universidade. Os professores mandaram que todos nós, alunos, encostássemos as cadeiras nas paredes fazendo uma espécie de “grande círculo”. Depois, foi dado um tema. Cada estudante deveria dizer algo de si sobre aquele tema – não adiantava ser de outro, “meu vizinho”, “minha irmã”. E o verdadeiro exercício era: ouvir. Não podíamos interromper, criticar, elogiar, fazer perguntas. Nada. Nem quando o colega acabasse – aí seria a vez do próximo. Era preciso aprender a ouvir.

Lembrei disso ao ler Pagar a Terra, mais um quadrinho espetacular do jornalista e quadrinista Joe Sacco, nascido em Malta e radicado nos EUA. Em seu primeiro livro de reportagem em quadrinhos, ele foi para a Palestina entrevistar quem morava por lá. Depois, vieram obras em Gorazde (na Bósnia), Sarajevo (também na Bósnia), Índia, Iraque...

Sacco tem faro jornalístico. Ele sabe escolher onde vai centrar seus esforços. Pesquisa, estuda, levanta dados, viaja e... ouve. É um trabalho de paciência e de empatia. É diferente de “se colocar no lugar do outro” porque é um passo além: é enxergar o outro, ouvir, prestar atenção.

“Pagar a Terra” dedica suas quase 300 páginas para ouvir os Dene, que vivem no território que hoje é conhecido como noroeste do Canadá desde muito antes da chegada dos europeus. Sua cultura tão ligada à natureza, nômade, espiritualizada, foi profundamente afetada desde o início do século 20. O motivo: tiveram o “azar” de viver em um território rico em petróleo, gás e diamantes.

O resultado é uma história profundamente marcada por “acordos comerciais” em que um grupo vem munido de leis, dinheiro e idiomas próprios querendo comprar a terra. Já o povo que “deveria” vender acredita que “a Terra não nos pertence, nós é que pertencemos a ela; o homem branco chegou querendo um pedaço, mas a questão da terra era impossível de resolver: você não vende seu pai, você não vende sua mãe”.

Tratados foram firmados. Os brancos, que veriam a explorar a terra – e exploram até hoje – gostaram. Já os indígenas... A geração de hoje questiona se a negociação com seus avós foi justa. E há outras negociações em andamento. Uma personagem diz: “Estamos sendo cuidadosos, cautelosos, colocando a preservação do meio ambiente em primeiro lugar. Nosso ambiente, nossa água, nosso ar são a prioridade aqui. Mas sou favorável à exploração dos recursos, o progresso que isso traria nos beneficiaria incrivelmente. Mas quero que essa exploração seja feita dentro das condições adequadas”. Até que ponto eles devem ceder? Não há uma resposta “certa” ou “errada” para isso. Estão longe da unanimidade. Há muitas opiniões, e esta é a beleza de uma obra do Joe Sacco: dar espaço a tantos pontos de vistas diferentes e complementares. Uma vez mais: saber ouvir.

Quando comprei o livro, achei que fosse sobre a exploração da terra e o impacto social, cultural e econômico sobre a nação Dene. Também é sobre isso. Mas há um ponto impressionante na relação entre o Canadá e os indígenas do qual eu não sabia, e que foi bastante doloroso aprender.

Assim Joe Sacco introduz o assunto: “Por que os povos indígenas dos Territórios do Noroeste parecem uma embarcação à deriva, sem contato com a cultura que um dia estiveram ancorados? A resposta não seria simplesmente: porque são um povo do mato despreparado para um mundo que está sempre mudando. Afastar os povos indígenas de sua cultura – apagar, de fato, a essência de sua indigenidade – foi a política oficial do Canadá por muito tempo”. E somos apresentados ao monstruoso conceito das escolas residenciais.

Por décadas funcionou assim: funcionários do governo canadense viajavam até o território dos indígenas, tão distante e difícil de chegar que o trajeto era feito por helicópteros. Chegavam lá e levavam as crianças, contra a vontade delas, para longe de suas famílias. Elas passavam a morar em escolas religiosas. Eram obrigados falar um idioma que não era o deles, a seguir um cotidiano que não era o deles, conviver com uma visão do mundo profundamente distante. Alguns conseguiam um mês de férias a cada ano de volta com sua família, outros enfrentaram 6, 8, 10 anos longe dos Dene. As crianças eram surradas caso se expressassem em seu próprio idioma, e não em inglês. Houve muita violência e abuso sexual. Se uma criança vive assim 11 meses por ano, por quase uma década, como vai ser quando ela voltar para junto da família, agora chegando aos 20 anos? Vai lembrar do seu idioma? Como caçar alce? Construir um barco? Limpar peixe? Obviamente, não. Isso fica para trás, substituído pelos traumas que uma criança ou adolescente traz após tantos anos de sistemáticos abusos sexuais e de outras naturezas.

Um sobrevivente das escolas residenciais narra: “Eu me lembro dos castigos físicos. Minha lembrança é de que aconteciam o tempo todo. Eu via as crianças levando tapas e pancadas possivelmente por falarem sua língua ou por não terem feitos suas tarefas. Na minha cultura, dos Dene das Montanhas, se você faz algo errado, eles se sentam com você e te dizem que aquilo foi errado. E aí explicam o impacto daquilo na família. Na escola residencial, você toma uma porrada e não sabe por que apanhou, fica com raiva porque não quer estar ali. Você tem saudades da família, de andar pela floresta, você sente falta de tudo o que significa ser um Dene. E aí eles te batem de novo, e isso triplica sua raiva. Mas você não pode fazer nada. Então o que acontece é que você começa a internalizar isso, e logo você já está acreditando no que eles dizem: que ‘você não é bom o bastante. Você não é bom o bastante. É por isso que precisamos te consertar. Porque você não é bom o bastante’. É esse tipo de abuso emocional, espiritual e mental que fica gravado em você e que você carrega para sempre”.

No exercício que citei no início deste texto, você nunca sabia o que viria do seu colega, o que ele carregava dentro de si. Constantemente, éramos surpreendidos – mais um dos benefícios de tentar ouvir o próximo. “Pagar a Terra” já seria um livraço se mostrasse “apenas” as consequências da exploração do petróleo e afins sobre os indígenas que lá moravam antes de serem abordados por uma cultura completamente diferente. Mas o livro fica ainda mais forte quando se aprofunda, por meio dos relatos que Sacco soube ouvir, nos trazendo mais e mais dimensões desta exploração, especialmente essa questão cultural-religiosa e seu impacto na desestruturação de dezenas de famílias Dene.

Joe Sacco sabe ouvir. É pena que existam tão poucas pessoas como ele no mundo.

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.