Coluna Hábito de Quadrinhos

Humor, metalinguagem e quebra da quarta parede: como a Mulher-Hulk antecipou Deadpool


22/03/2021 10h39

O Deadpool, da Marvel, é um personagem curioso. Surgiu como um vilão nas histórias da X-Force, virou anti-herói e depois ganhou revista própria. O que tornou seu título diferente das demais dezenas de super-heróis foi um humor escrachado, metalinguístico e com direito a constantes quebras da quarta parede – ou seja, ele conversava diretamente com o leitor. Ainda era um personagem da segunda divisão (talvez terceira) quando virou filme com Ryan Reynolds. Com o sucesso do longa, agora temos Deadpool para todos os lados.

Mas há uma heroína que é precursora do Deadpool e que está ganhando versão de carne e osso agora: a Mulher-Hulk! Jennifer Susan Walters, a prima de Bruce “Hulk” Banner, surgiu em 1980 e era conhecida como a “selvagem” Mulher-Hulk (esse era o nome da sua revista: “The Savage She-Hulk”). Mais de quatro décadas depois, ela vai ganhar sua própria série de TV (prevista para 2022) e será interpretada pela ótima atriz canadense Tatiana Maslany (que chegou a levar um Emmy por sua atuação em “Orphan Black”).

De coadjuvante do Hulk a protagonista de sua própria série: o salto da importância da personagem aconteceu graças ao trabalho do grande roteirista-ilustrador John Byrne.

Em 1984, Byrne escrevia e desenhava o título mensal do Quarteto Fantástico uma das melhores fases da equipe. Fã declarado da Mulher-Hulk, ele deu um jeito de a colocar como membro do grupo – mas como, se eles são conhecidos como “quarteto”? Simples: tirou o Coisa do time, dando a ele um título solo, e deixando a heroína verde em seu lugar. De quebra, em 1985, Byrne lançou uma graphic novel estrelada por ela: “A Sensacional Mulher-Hulk”.

Esses dois movimentos transformaram a personagem. Ela deixou de ser meramente a prima do Hulk e começou a ter sua própria mitologia. No caminho, deixou de ser conhecida como “a selvagem” e virou “a sensacional Mulher-Hulk”. Ponto para John Byrne.

Em 1986, o talentoso Byrne foi chamado pela rival DC para revitalizar o Superman (um trabalho incrível, aliás, e que está sendo relançado no Brasil). Seus olhos ficaram mais voltados, então, para o mundo de Lex Luthor, Batman, Mulher-Maravilha, Liga da Justiça e companhia.

Foi só em 1989 que Byrne conseguiu assumir o título mensal da Mulher-Hulk – agora, graças a ele, chamado, “The Sensational She-Hulk”, e não “The Savage She-Hulk”. E foi aí, dois anos antes do surgimento de Deadpool, que a Mulher-Hulk deu um salto.

As histórias da Mulher-Hulk dessa época continuaram tendo muita ação, claro, mas foi a criatividade de Byrne que mudou o jogo, quebrando muitas convenções das HQs de super-heróis. A heroína verde sabia que estava dentro de uma história em quadrinhos, abrindo espaço para muito humor. Exemplos:

· Em certa edição, com o vilão fugindo, ela rasga o papel da HQ, atravessa uma página de anúncios e ressurge logo adiante para o capturar;

· A Mulher-Hulk viaja para o espaço e fica decepcionada com o que encontra: acha que o ilustrador desenhou mal e porcamente o cosmo! Aí, ela se vira para fora da página e reclama, indignada: “Qual é, Byrne! É minha primeira vez no espaço profundo na minha própria revista! Você pode fazer melhor que isso!”;

· Em uma viagem a New Orleans, uma coadjuvante comenta sobre a beleza de uma rua específica. A Mulher-Hulk responde: “Provavelmente é a única rua desta cidade da qual o John Byrne achou uma referência decente para ter como base para desenhar”;

· Em certa cena, Mulher-Hulk conhece o próprio John Byrne! O autor brinca com sua má fama de pedante e retrata a sim mesmo como chato e arrogante. Resultado: de saco cheio, a Mulher-Hulk arremessa o artista mala pela janela...

Não é garantia de que esse humor surreal será mantido na série de TV – mas, depois do experimentalismo metalinguístico de “WandaVision”, eu não duvidaria. Também deve ser abordado o lado advogada da Mulher-Hulk (ela é formada em Direito e exerce a profissão), muito bem explorado em outro momento de sua trajetória– na fase escrita por Dan Slott, publicada de 2004 a 2006.

O leitor brasileiro ainda não teve o privilégio de ler a fase inteira de John Byrne. Uma edição da Salvat, chamada “Mulher-Hulk”, apresenta as oito primeiras histórias, de um total de 27. Como fã de Byrne, e da Mulher-Hulk, fico na torcida para que sejam lançados encadernados completando a série.

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