Coluna Hábito de Quadrinhos

Homem-Animal: Como Grant Morrison pegou um zé-ninguém e chacoalhou os super-heróis


12/04/2021 12h22

Adoro o personagem Homem-Animal. Seus poderes são divertidos: ele assume as características de algum animal que estiver por perto – por exemplo, ele pode voar se uma mosca estiver passando ali. Ou respirar embaixo d’água caso haja algum peixe nas redondezas.

Mas o Homem-Animal não é da primeira divisão da DC Comics, por dizer assim. Não há um filme ou série estrelados por ele. Ele sequer faz ponta em uma das inúmeras adaptações de sua editora para aa DC – e olha que personagens bem menores, como Fera Bwana, Cão Raivoso e Jon Valor já apareceram. Mas o nome do Homem-Animal marca um dos maiores momentos dos gêneros dos super-heróis das últimas décadas. E como essa saga será relançada aqui no Brasil em breve, acho que vale a pena trocar duas palavras sobre ela.

Buddy Baker foi criado em 1965 – na época, seu codinome era menos explícito sobre seus poderes: chamava-se Homem-A. Era um tempo em que as HQs eram menos profissionais: por exemplo, não se sabe quem escreveu a história. Carmino Infantine desenhou, mas o roteiro pode ter sido escrito por Dave Wood ou France Herron.

Ele nunca foi protagonista. Era um coadjuvante, aparecendo aqui e ali em histórias de personagens maiores, como a Mulher-Maravilha. Aí, passou a fazer parte de um grupo chamado Heróis Esquecidos, formado apenas por... coadjuvantes. E, mesmo neste grupo, não foi protagonista.

Aí veio 1987. Neste ano, a DC começou, aos poucos, a colocar um selo de “sugerido para leitores maduros” na capa de alguns de seus títulos, que estavam sob o comando da excelente editora Karen Berger. Eram títulos de personagens sem muito destaque sendo dados para roteiristas que estavam sendo “importados” do Reino Unido e “testados” pela editora. Assim, se algum escritor não fosse tão bem, não ia causar muito impacto a um personagem importante como Superman, Mulher-Maravilha, Batman ou Liga da Justiça.

Nessa “Invasão Britânica”, Alan Moore assumiu a revista do Monstro do Pântano; Neil Gaiman escreveu Orquídea Negra e Sandman; e Grant Morrison, da Escócia, ficou com a Patrulha do Destino e o Homem-Animal.

As primeiras quatro histórias do Homem-Animal de Morrison não destoavam tanto das demais: havia um herói e um antagonista - que parecia ser vilão, mas era mais profundo do que isso. E um dilema moral envolvendo um tema importante: pesquisas feitas em laboratório em animais vivos.

Morrison deu sua própria interpretação ao personagem. Tornou-o vegetariano, o que o ajudou a abordar temas mais próximos do ambiente e dos direitos dos animais. Buddy, que não tivera filhos, passou a ter dois: um menino, Cliff, e uma menina, Maxine.

A partir do quinto número, Morrison teve liberdade para “voar”. Suas histórias ainda eram atreladas à cronologia oficial da DC, com participações de outros personagens (Buddy passou a fazer parte da Liga da Justiça), mas o Homem-Animal criou seu próprio caminho.

Em uma história magnífica, o Homem-Animal vai para uma espécie de retiro espiritual em um deserto. Ele e um colega tomam uma droga alucinógena para tentar entender o Universo e o papel deles dentro do Cosmo. Pausa: um super-herói se drogando? Um membro da Liga da Justiça menos preocupado em prender vilões e mais voltado a questões filosóficas do tipo “o que estou fazendo aqui”? Definitivamente, não era uma história típica das publicadas por Marvel ou DC.

Tenho vontade de dar muitos spoilers – como a série saiu há mais de 30 anos, acho que seria perdoado. Mas não é uma série famosa, então...

Tragédias ocorrem. O Homem-Animal toma decisões com o coração, e não a mente, mostrando-se um dos mais humanos “supers” da editora. Há personagens ambíguos (como o Mestre dos Espelhos), viagens no tempo, um perigo absurdo que ronda o universo... Uma ótima saga de super-heróis.

Mas bem mais do que uma saga de super-heróis. Conforme a saga vai se aproximando do final, começam a surgir homenagens aos próprios quadrinhos. Personagens desconhecidos, mas que remontam aos tempos de criatividade e inocência do gênero, passam a parecer para curtas aparições especiais: o Quinteto Inferior, uma paródia da Liga da Justiça feita pela própria DC; Hot Dog, o cachorro especial que... bem, solta fogo pela boca; Joca, o Coelho Maravilha (uma espécie de Shazam, mas... bem, mas é um coelho)...

Há um motivo para esses personagens desconhecidos aparecerem: afinal, por razões que fazem todo sentido dentro da narrativa, o Homem-Animal aparece no Limbo dos Quadrinhos. É para lá que vão os personagens quando ninguém mais se lembra de que eles existem. Ou seja, ao mesmo tempo em que vemos Buddy numa jornada terrível e trágica, vamos uma reflexão-homenagem ao gênero dos super-heróis e sua inocência que foi deixada de lado.

E há a conclusão da saga. Revolucionária para a época. Imitada algumas vezes depois. E que vou, infelizmente para mim, deixar de comentar aqui. Saiu no número 26 da revista do Homem-Animal, o último com Grant Morrison escrevendo. Algo que quebrou completamente com as convenções do gênero. Droga, não posso falar mais.

Enfim, a editora Panini colocou em pré-venda um volume único, com mais de 700 páginas, com a fase completa do Homem-Animal escrita por Grant Morrison – será vendido a partir da próxima quinta. Acho que vou ser redundante, mas vou encerrar dizendo que sou muito fã dessa fase :-).

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.

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