Muitos anos atrás, entrei em uma loja de HQs em Buenos Aires com uma listinha de quadrinhos argentinos para comprar. Falei em português com o vendedor, que a princípio não me deu muita bola. Isso mudou quando disse o primeiro nome da minha lista: Alberto Breccia.
- Maestro! Maestro!
Empolgado, o vendedor gritava “Mestre! Mestre!” (em espanhol, claro), enquanto selecionava quadrinhos do Breccia para mim. Na época, era um autor bem pouco publicado no Brasil – apenas um volume de “Perramus” e “Che - Os Últimos Dias de Um Herói” tinham saído por aqui, ambos em 2008. Este último, aliás, tem uma curiosidade: foi desenhado em parte por ele e em parte por Enrique Breccia, seu filho.
Depois, as obras de Breccia começaram a chegar conta-gotas: o esplêndido “O Eternauta” saiu em 2012 e Mort Cinder, em 2016.
Mas essa dose homeopática de Breccia parece ter acabado. Quatro livros dele foram publicados no pandêmico ano de 2020, e mais dois acabaram de sair: “Viajante de Cinza” e “Um Tal Danieri”. Mas antes de falar brevemente sobre eles, vamos trocar dois dedinhos de prosa sobre Breccia. Por que ele é importante?
Argentino nascido no Uruguai, Breccia (1919-93) foi, antes de tudo, extremamente talentoso. Um artista sem medo de inovar. Poderia criar HQs “apenas” com desenhos, mas experimentava técnicas diferentes, texturas, ângulos inusitados, colagens, diagramações ousadas. Não havia limite.
Até no formato o Maestro inovou. Ele e o excelente roteirista Héctor German Oesterheld (1919-78) lançaram “Platos voladores al ataque!!” (em tradução livre, “Disco voadores atacam!!”). Esta série não foi publicada em uma revista ou em um livro, mas em... cards! Trata-se de uma coleção em que há uma ilustração na frente e a descrição da cena atrás. Foi lançada em 1971 na Argentina e era distribuída dentro dos envelopes de figurinhas do álbum “Súper Fútbol”.
Era muito difícil para um leitor completar a coleção – precisaria achar todos os cem cards. Felizmente, a editora Ancares lançou, em 2002, um livro (em espanhol, apenas) com a história inteira, e é possível ver a Terra sofrendo com o embate interplanetário que coloca Saturno e Plutão em lados opostos.
Outro ponto importante de Breccia é o dedo mágico para projetos importantes. Ao lado de grandes parceiros, como o já citado Oesterheld, ele publicou marcos dos quadrinhos argentinos. Um caso específico, aliás, eu diria que é uma das maiores obras das HQs mundiais: “O Eternauta”, cuja primeira parte foi lançada entre 1957 e 59, durante a ditadura argentina.
“O Eternauta” é uma ficção científica maravilhosa que funciona como alegoria política da sociedade em que foi escrita. Há o peso opressor e maldito da ditadura, e humanos comuns tentando lidar com isso. A HQ mostra a Argentina sendo invadida por um exército... alienígena. Poderosos e bem armados, eles acabaram com a democracia da Argentina da noite para o dia. A história mostra o ponto de vistas de alguns sobreviventes: argentinos comuns que não sabiam como reagir diante de uma organização militar bem maior e aparentemente invencível. Uma obra-prima.
Pois bem, voltemos aos lançamentos. Ambos são parcerias com outro escritor argentino: Carlos Trillo (1943-2011), criador de El Loco Chávez e Clara da Noite.
“Viajante de Cinza” conta a história de um preso na solitária. Sem muitas alternativas, recorre a viagens imaginárias para momentos históricos – uma oportunidade para o Maestro demonstrar seu talento.
“Um Tal Danieri” é a primeira colaboração da dupla Trillo & Breccia. Trata-se da história de um detetive que trabalha em uma cidade sombria, violenta e triste - um suspense noir ambientado na ditadura argentina.
Fico imaginando a alegria daquele vendedor argentino se soubesse que estamos recebendo estes exemplares do Breccia:
- Maestro! Maestro!
Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.
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