A DC Comics celebra este mês os 80 anos da Princesa Diana de Thesmycira, a Mulher-Maravilha. Quando ela surgiu, havia poucas super-heroínas em meio a dezenas (centenas?) de super-heróis. Mesmo assim, ela prosperou e hoje pode ser considerada uma das maiores personagens de quadrinhos de todos os tempos, e não apenas do gênero dos super-heróis.
Para entender um pouco mais sobre a personagem, conversei com Dani Marino, pesquisadora de HQs e especialista em questões de gênero. Tudo a ver com o tema :-).
Para ilustrar esta entrevista, peguei várias representações da Mulher-Maravilha em ordem cronológica – há ao menos um desenho por década, para notarmos a evolução na maneira como ela foi representada.
Você já pesquisou bastante a Mulher-Maravilha, escreveu artigos sobre ela. O que te atraiu na Mulher-Maravilha? Poderia, por favor, apresentar um pouco seus trabalhos sobre a personagem?
Minha história com a personagem é curiosa: minha referência dela era o seriado dos anos 70 e as animações dos Superamigos. Eu sempre li quadrinhos, mas não era interessada nos da DC e nunca pensei em estudar a Mulher-Maravilha. Até que em 2016 eu fui convidada a participar de uma mesa sobre ela no Festcomix e, a partir daí, começaram a surgir outros convites. Foi então que eu fui atrás de ler os quadrinhos antigos dela e passei a acompanhar algumas histórias, principalmente as fechadas.
Eu também conheci a Trina Robbins, primeira mulher a desenhá-la, entrevistei a Christie Marston, neta do criador da Mulher-Maravilha [William Moulton Marston, que cocriou a personagem com o ilustrador Harry G. Peter]. Como sou pesquisadora de HQs especializada em questões de gênero, meus artigos sobre ela versam sobre a forma que essas questões são apresentadas nas HQ. Também participo de um livro celebrando seus 80 anos que será lançado pela Skript.
A Mulher-Maravilha não foi a primeira super-heroína uniformizada e com superpoderes a surgir nos quadrinhos. Antes dela vieram, por exemplo, a Mulher-Bala, a Moça-Gavião e uma Viúva Negra (com poderes mediúnicos, nada a ver com a espiã da Marvel que é membro dos Vingadores). O que a Mulher-Maravilha teve de diferente que a destacou das demais?
Quando Marston foi chamado para criar um novo super-herói para a editora, a ideia era tentar diminuir as polêmicas que haviam sobre o gênero ser muito violento e não indicado para crianças.
Marston era um advogado e psicólogo entusiasta dos quadrinhos e que simpatizava com o movimento sufragista, o que o levou a criar uma personagem que trazia em seu discurso algumas falas de libertação feminina. Além do mais, a Mulher-Maravilha tinha um código moral que norteava suas ações, e seu apelo entre as mulheres foi muito grande.
Se você olhar a lista das primeiras aparições dos super-heróis nos quadrinhos, quase sempre eram homens. Surgiram dezenas de super-heróis antes de começarem a aparecer as super-heroínas. Por que demorou tanto para retratarem mulheres como aventureiras superpoderosas uniformizadas?
Porque o quadrinho, assim como qualquer produção humana, irá refletir o contexto onde está inserido. Ou seja, o contexto é historicamente machista e patriarcal. Muitas mulheres que faziam quadrinhos assinavam com nomes masculinos e mesmo no caso de se apresentarem como mulheres, como ocorreu com Dalia Messick -autora das tiras de aventura mais longevas dos EUA, que inicialmente assinava como Dale-, os homens não acreditavam que mulheres pudessem produzir esse tipo de narrativa.
O seriado de TV da Mulher-Maravilha dos anos 70, estrelado por Lynda Carter, foi sucesso de público. No que ele acertou para ser tão bem aceito? E qual foi a importância dele para a personagem?
Foi a primeira vez que as mulheres que já adoravam a personagem nos quadrinhos podiam acompanhar suas aventuras em live action. Nos anos 70, a TV era o meio mais popular de difusão cultural - seu alcance e sua recepção eram massivos, né? Então, a série se tornou um fenômeno por trazer uma personagem forte e com a qual muitas as mulheres se identificavam.
A Trina Robbins me contou que os coletivos femininos dos quais participava se reuniam para assistir a série e que as mulheres vibravam e aplaudiam. Isso foi uma reação ao que havia acontecido com a personagem anteriormente, quando ela havia perdido seus poderes nos quadrinhos e as feministas, lideradas pela Gloria Steinen, reivindicaram que ela os recuperasse. Gloria Steinen criou a primeira revista feminista dos EUA e colocou a Mulher-Maravilha em sua capa com os dizeres: “Mulher-Maravilha para presidente”.
Nestas oito décadas, a mitologia da Mulher-Maravilha cresceu a ponto de termos, hoje, dezenas de coadjuvantes e vilões importantes. Entre tantos personagens, consegue escolher três como seus favoritos? E o que você considera interessantes neles?
A Mulher-Leopardo [Cheetah, no original] é certamente a vilã mais interessante pela relação que ela tem com a Diana. Em várias histórias elas são muito amigas, então, Diana tem especial consideração pela sua condição. Gosto dela justamente porque costuma ser mais humanizada nas HQs, não é simplesmente má “porque sim”, ela tem arcos bem definidos e inclusive histórias próprias.
Ares e Medusa são os outros dois que acho bons vilões porque suas histórias costumam recuperar aspectos da mitologia grega que acho muito interessantes, embora a Medusa seja historicamente muito injustiçada também, pois hoje muitos historiadores a entendem como uma vítima, não apenas uma vilã.
Em 2016, a Mulher-Maravilha foi nomeada Embaixadora Honorária da ONU para o Empoderamento de Mulheres e Meninas. Pouco tempo depois, após uma petição online que, entre outras coisas, dizia que a personagem era muito sexualizada, a ONU recuou da nomeação. Como você viu este processo?
Foi um tiro no pé. Esse departamento da ONU já teve outros personagens ficcionais como embaixadores e a justificava, embora tenha algum fundamento, não foi bem recebida entre os fãs. A ONU tem programas de igualdade de gêneros e gênero é, na maioria das vezes, atravessado por questões relacionadas a raça e classe social. Nesse sentido, a Diana não representaria a maioria das mulheres, afinal, sua estética está ligada a valores hegemônicos e irreais.
O que você achou dos dois filmes da Patty Jenkins com a personagem? Gostou de como ela foi representada?
Adorei o primeiro, que a representou de forma forte e levantou diversas discussões sobre representação feminina no cinema.
Já o segundo filme apresentou uma Diana que não condiz em nada com a personagem dos quadrinhos e o filme é confuso, mal editado. Uma pena.
A DC Comics lançou, no ano passado, edições especiais que se passavam no futuro. Ali, a Mulher-Maravilha era uma brasileira: Yara Flor. A personagem fez relativo sucesso e ganhou revista próprio, agora com codinome de Moça-Maravilha.
No Brasil, notei dois movimentos diferentes. Primeiro, uma espécie de felicidade. Depois, um pouco de desapontamento com a história, que não retrataria tão bem aspectos da cultura brasileira que se propôs a abordar. Você notou o mesmo movimento? E o que você achou da criação da personagem?
Na primeira lida eu gostei. Ela é linda e muito poderosa. Mas o tom da fala dela é sempre sarcástico, irônico, como se não levasse nada a sério e estivesse sempre de má vontade, características que não têm nada a ver com a ideia da Mulher-Maravilha.
Aí, depois de ler o que mulheres indígenas sentiram em relação à personagem e depois de ler o que feministas escreveram sobre a representação da mulher latina das produções estrangeiras, percebi que não houve o menor cuidado dos roteiristas em representar as relações da personagem com o folclore local. Não houve respeito. Afinal, o que chamamos de folclore é na verdade um conjunto de rituais e símbolos da religiosidade dos povos originários. Então, eu entendi e concordei com as leituras que outras mulheres fizeram. Faltou pesquisa.
Consegue escolher as suas três histórias ou fases favoritas da Mulher-Maravilha? E por quê?
Amo “Os Novos 52” [releitura que a DC Comics fez para seus personagens, inclusive a Mulher-Maravilha, em 201], porque é um dos arcos com maior representação dos deuses gregos, traz uma história de origem que achei ótima e é divertida, consegue manter o mesmo ritmo até o final e a Diana não é super sexualizada como normalmente é nas outras revistas.
A fase do George Pérez, porque foi cuidadosa em representar o panteão dos deuses também e ela tem suas características psicológicas bem aprofundadas, é um arco lindo.
E “A Nova Fronteira”, de Darwyn Cooke, que além do desenho ser muito bonito, há histórias em que a Diana resgata mulheres sequestradas que são bem marcantes. Achei a representação dela muito boa.
Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.
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