Fundação Padre Anchieta

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Há duas décadas, eu estava almoçando com meu pai e falávamos sobre vários assuntos. Do nada, ele sacou esta pergunta:

- Filho, por que você gosta tanto de Sandman?

Não consegui responder de bate-pronto. Não que eu não soubesse as razões -era a minha HQ predileta -, mas simplesmente travei.

Um contexto aqui: mais de 20 anos atrás, adulto que lia quadrinhos era sempre exceção. O mundo nerd-quadrinístico, capitaneado pelos filmes e séries do Universo Cinematográfico Marvel, ainda não havia virado pop. Encontrar alguém na rua com uma camiseta de super-herói, gênero tão associado às HQs, era raro.

Mesmo falar sobre quadrinhos com alguém era difícil. No meu círculo pessoal, ninguém se interessava. Uma vez, em 2000, liguei para o escritório do Will Eisner para tirar uma dúvida com quem atendesse – coisa simples, nada demais. A pessoa atendeu, passou o telefone para o Eisner e nós conversamos brevemente. Desliguei o telefone sorrindo, louco para contar para alguém. Mas para quem? Não conhecia ninguém que soubesse quem era Will Eisner. Não conhecia ninguém que se interessasse em saber quem era Will Eisner.

Talvez por isso a pergunta do meu pai tenha me surpreendido. Finalmente, finalmente!, alguém tinha se interessado por algo que era minha grande paixão. A pergunta não foi genérica (por que vê gosta de quadrinhos?), mas específica:

- Filho, por que você gosta tanto de Sandman?

Lembrei desta pergunta agora por que a Netflix vai lançar, em um futuro próximo, uma série que adapta “Sandman”. Não a obra inteira, apenas o início dela. E estou louco para ver.

É uma oportunidade também para respirar fundo e tentar responder ao meu pai (que certamente está lendo esta coluna, como sempre!) de uma maneira organizada.

Antes, uma breve explicação sobre o que é “Sandman”: foi uma revista mensal da DC Comics lançada entre 1989 e 1996. A DC teve três personagens chamados Sandman antes desta série, todos super-heróis. Mas o roteirista inglês Neil Gaiman, que escreveu as 75 edições mensais do título, mudou tudo. O nome do personagem não é Sandman, mas Sonho – Sandman é o título da revista, e apenas um personagem chama o protagonista assim em suas 75 edições. E o lado super-herói também foi deixado de lado: “Sandman” é uma saga de fantasia e terror com início, meio e fim - foram 75 edições mensais, além de muitos números especiais.

O primeiro motivo de eu gostar tanto de “Sandman” é que é muito bom. Acima da média. Imagine que você gosta de seriados de TV, de preferência drama. Aí você assiste a “Years and Years”. Ou, se você gosta de comédia, a “Maravilhosa Sra. Maisel”. Nos dois casos, você vai adorar: estão acima da média. Ambos têm atuações maravilhosas, ótima direção etc, mas, antes de tudo, um roteiro espetacular.

Este é o ponto em comum: quando “Sandman” surgiu, no final dos anos 80, havia ótimos, mas poucos, roteiristas tocando revistas mensais na Marvel e DC. Neil Gaiman se sobressaiu. Embora nem todos os ilustradores que o acompanharam no título fossem exatamente acima da média, não importava: eram os intricados – e às vezes líricos – roteiros que angariavam fãs.

O segundo motivo é que “Sandman” destoava em seu ambiente. Voltando ao exemplo de séries. Uma coisa é gostar de seriados de suspense – outra é assistir a “Twin Peaks”. Tem algo ali que é muito diferente. Salta aos olhos. Salvo exceções, os títulos da DC e da Marvel eram basicamente de super-heróis, mocinho versus bandidos. Podiam até ser histórias muito bem contadas (o Superman de John Byrne, a Mulher-Maravilha de George Pérez), mas estavam todas na mesma prateleira. “Sandman”, não. Não havia maniqueísmo. Sonho, o protagonista, é uma entidade cósmica, uma espécie de deus que comanda o Reino dos Sonhos. Ele não quer impedir crimes ou salvar o mundo. Suas histórias vão em outra dimensão, completamente imprevisível.

E justamente por ele ser uma espécie de deus, imortal e quase onipotente, o leitor não tem ideia nem de onde ou quando a história vai se passar. Pode ser na Bagdá de milênios atrás ou na Grécia muito antiga... ou na Nova York de hoje.

Vou citar só mais um terceiro ponto e parar, relembrando aqui que outros fãs de uma série tão complexa podem apresentar outros três pontos completamente diferentes – e válidos – de por que Sandman é tão bom.

Para mim, a construção dos personagens é outro ponto alto. Sonho não é protagonista da maioria das histórias – talvez não seja nem de metade. Ao seu redor, Neil Gaiman criou um elenco maravilhoso de personagens, sejam eles humanos (como a inesquecível Rose Walker), entidades míticas (como o anjo caído Lúcifer) e até personagens inesperados como a pequena gata Kitty – em uma história, veja você, protagonizada apenas por gatos, em que os humanos são meros coadjuvantes.

Vários personagens criados por Gaiman em sua passagem por “Sandman” brilharam tanto que protagonizaram seus próprios títulos mensais ou minisséries em quadrinhos. Alguns, inclusive, ganharam série na TV (como Lúcifer) ou apareceram em outras séries (os Detetives Mortos participaram de um belo episódio da Patrulha do Destino).

Ótimos roteiros, histórias que destoavam de tudo o que era feito à época e uma construção incrível de personagens. Respondi à sua pergunta, paizão?

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romanceVenha me ver enquanto estou vivae da graphic novel Púrpura, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.