Fundação Padre Anchieta

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Reprodução/Paracuellos
Reprodução/Paracuellos

Espanha, primeira metade do século 20. Duas cenas se passam em um abrigo para crianças mantido pela união da Igreja Católica com a ditadura espanhola de Francisco Franco (1892-1975):

1 – Uma delegada do governo faz uma inspeção para ver como as crianças (órfãos, mas não só) estão sendo tratadas. Ela os vê receberem, após a refeição, uma tigela de leite – o que nunca acontece na sua ausência. Simpatiza com um menino, e pede que o sirvam mais um pouco de leite. É algo raro: a comida é escassa, e diariamente eles passam sede e fome. Mesmo assim, ele titubeia. Se aceitar, teme qual será a reação da responsável pelo abrigo. Se negar, será mal-educado com a fiscal. Aceita.

Assim que a fiscal vai embora, as crianças são dispensadas do refeitório – menos o menino. A funcionária, ligada à Igreja Católica, o obriga a tomar mais uma tigela de leite, mesmo ele não estando com fome. E outra tigela. E outra. E outra. E outra. À noite, os colegas o encontram vomitando.

2 – Às vezes, alguns dos meninos que moravam no abrigo urinavam na cama. Geralmente, os menores de seis anos. Quando acontecia, eram humilhados publicamente, tendo de gritar “eu sou mijão” na frente de todos, entre outros castigos. Desta vez, entretanto, a funcionária do abrigo tem uma ideia diferente. Ela enche um balde com álcool, toca fogo nele e obriga os meninos que urinaram na cama a tirarem as calças. Você ouve a ordem “senta aí”, mas o que acontece não é mostrado explicitamente. Use a imaginação.

As duas cenas estão em “Paracuellos”, obra semiautobiográfica do espanhol Carlos Giménez, criado em um desses abrigos, mesmo não sendo órfão.

“Paracuellos” é uma série de histórias curtas, inspiradas nas lembranças de Giménez e de colegas com quem tem contato até hoje. As HQs começaram a ser publicadas no final dos anos 70 na própria Espanha, mas não fizeram tanto sucesso. Depois, passaram a sair na França. Fizeram sucesso de público e crítica: em 1981, “Paracuellos” foi aclamada a melhor HQ do ano no Festival de Angoulême, o mais tradicional da Europa.

Com o passar dos anos, as histórias foram sendo reunidas em livros – seis edições já saíram até hoje. O Brasil recebeu, há pouco tempo, “Paracuellos”, da editora Comix Zone!, que compila os quatro primeiros volumes.

Não duvido que Giménez tenha criado essa série como maneira de lidar com o sentimento que carrega por ter vivido tudo isso. Essa maneira de remexer o próprio passado (ou presente) é comum: por meio da arte, trata-se dos demônios internos. Nem sempre, entretanto, a iniciativa resulta em uma boa obra de arte. Neste caso, virou uma tremenda história em quadrinhos que me deixou com algumas pulgas atrás da orelha.

  • Como uma criatura, escondida atrás de “ideais católicos”, flagela uma criança de menos de seis anos em um balde pegando fogo? (Duvido que seja cristã de verdade.)
  • Como algumas pessoas conseguem justificar a existência de ditaduras?
  • O que leva o ser humano a ser, por vezes, tão cruel?
  • Isso acontece ao nosso redor? Como podemos evitar que aconteça?

Sim, “Paracuellos” é um livro que te fisga. Não te faz sorrir ou se distrair. Está mais para uma mão te apertando um pouco o coração e te fazendo pensar.

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. Nascido e criado em São Paulo, é filho de um físico luso-angolano e de uma jornalista paulistana.

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