As ações globais de suspensão de publicações e contas em redes sociais deixam claro que o mundo civilizado considera a disseminação de fake news um perigo para a democracia. Com a ofensiva partindo também de meios de pagamentos digitais - como acaba de acontecer com o influenciador digital Olavo de Carvalho -, o fluxo de dinheiro que financia redes de mentira e ódio mundo afora também sofrerá algum revés. São iniciativas importantes e pedagógicas neste momento de crise, mas uma solução mais perene precisa ser buscada na – recorro a um clichê – educação.
A alfabetização midiática é tida como fundamental para a formação de jovens, do ensino fundamental ao médio, muito antes de a internet potencializar o acesso à comunicação. Tornada lei em 2018, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reconhece essa importância em vários trechos, institucionalizando a prática que até então dependia de esforços individuais de educadores. No entanto, para dar conta do fluxo de desinformação que se alastra pela rede, a escola terá de ir além e mostrar aos estudantes não só o que é, mas como funciona a mídia contemporânea.
Em artigo publicado na revista especializada ECCOM, as pesquisadoras Egle Spinelli e Jéssica de Almeida Santos consolidam dados e estudos que apontam a educação midiática como uma das esperanças para se enfrentar o ambiente contaminado por desinformação. Segundo o texto, 62% dos brasileiros que utilizam o Whatsapp já acreditaram em alguma mentira embalada como notícia que receberam pelo aplicativo de mensagens. O artigo ainda revela que 64% dos norte-americanos acreditam que as tais fake news confundem a interpretação dos fatos.
A facilidade de uso dos recursos da rede, especialmente com a popularização dos smartphones na última década, tornou mais fácil o caminho até o conteúdo, mas a formação de senso crítico não evoluiu na mesma velocidade nem intensidade. O resultado é uma legião de consumidores de informação sem discernimento para distinguir se é fato ou boato aquilo que está acessando na internet. Pior, tornam-se soldados involuntários de um exército de mentirosos e agressores.
Orientar alunos na leitura de notícias, explicar os gêneros jornalísticos e a estrutura narrativa que formam a comunicação são importantes ensinamentos, mas já não parecem bastar para instruir o adolescente a se relacionar com a mídia atual. Há um complexo sistema abrigado na arquitetura das redes diversas, cuja compreensão é necessária para o aproveitamento seguro desses espaços virtuais. Será necessária, portanto, a inclusão desses indivíduos no ecossistema.
A tarefa de inclusão midiática será necessariamente mediada pela tecnologia, mas pode – e deve - priorizar a humanização dos processos em detrimento do ensino instrumental. Já está bastante claro que lidar com aplicativos, softwares e equipamentos diversos não constitui um obstáculo nessa relação. Há uma série de relatos de crianças que aprendem a mexer em smartphones avançados antes dos adultos, já que facilidade de uso é uma das premissas desses aparelhos.
Manter foco demasiado das aulas em ferramentas também incorre no risco de obsolescência, dada a rapidez com que as tecnologias são atualizadas. E, na dúvida, sempre tem um videotutorial na internet ensinando a utilizar um recurso de forma mais efetiva e ágil do que qualquer aula presencial. O ponto de atenção aqui é mais conceitual e reside em como os sistemas comunicacionais funcionam, quais são as motivações para existirem na rotina das pessoas.
A estrutura de banco de dados, por exemplo, quando compreendida na essência - e não especificamente na técnica -, leva diretamente ao entendimento do uso que se pode fazer de dados pessoais e, por extensão, de como se faz a oferta de conteúdo enganoso, montado ao gosto do usuário para enganá-lo. Da mesma forma, exercitar lógica e programação pode conduzir o jovem a entender o funcionamento dos algoritmos e, consequentemente, a saber como pessoas diferentes podem receber versões diferentes de uma mesma informação.
Não é razoável crer que cidadãos críticos serão formados a partir do uso ostensivo de redes sociais, buscadores e de aplicativos de mensagens. Todas essas ferramentas são realmente úteis nos dias atuais, mas não precisam ser o foco da educação para além do que são de fato: ferramentas. O professor precisa estar livre e apto a avançar rumo ao racional por trás dessas tecnologias de comunicação para provocar a dúvida e a inquietação nos alunos.
Evidentemente, para operar esse avanço serão necessários muitos laboratórios equipados e alguma capacitação de professores, além de muita empatia. Está bastante explícito nas aulas a distância neste período de quarentena que há um gigantesco abismo entre alunos de escolas públicas e privadas, tanto nas condições pessoais - dentro de casa - quanto na estrutura das instituições. Portanto, deve ser objetivo do conjunto da sociedade reduzir essa distância, pois vencer a batalha da desigualdade não depende apenas do educador.
De qualquer modo, ao fornecer elementos para que jovens avaliem a credibilidade de determinada informação, combinando com explicações sobre como aquela notícia chegou até eles, a educação básica poderá dar mais oportunidades de defesa às novas gerações contra o mal da desinformação. De quebra, pode favorecer futuros criadores de serviços e plataformas em vez de apenas consumidores passivos de tecnologia alienígena.
Pode parecer utópico e até ingênuo sugerir uma movimentação desse porte em um sistema de ensino que tem necessidades mais rudimentares, como papel higiênico, água limpa e professores bem formados e bem pagos. Mas vou correr esse risco, pois entendo que a missão do professor e do jornalista é acreditar na potência das pessoas, na capacidade de evolução e de revolução da sociedade a partir do conhecimento, desde cedo.
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018) e pesquisador associado ao ESPM MediaLab.
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