A riqueza das redes e o dilema dos usuários
O cidadão conectado é, ao mesmo tempo, consumidor e produto em um modelo de negócio que fatura às custas da dependência que impõe a seus clientes
24/09/2020 20h00
Muitas pessoas se surpreenderam com as declarações de ex-funcionários de gigantes da tecnologia da informação no documentário “O Dilema das Redes” (Jeff Orlowski, 2020), trazendo revelações de bastidores sobre a atuação das plataformas interativas. Outras tantas se surpreenderam com a surpresa desses usuários de serviços online por entenderem que, a essa altura do campeonato virtual, todo mundo já deveria saber para que e a quem servem os algoritmos das mídias sociais e afins.
Primeiramente, já deveria ter caído a ficha que esses sites são empresas privadas e, como tal, funcionam como qualquer outro mercado: visam maximizar seus lucros. Se não cobram pelos serviços que oferecem, precisam amparar o modelo de negócio em outros meios de financiamento de seus custos, como a venda de publicidade. Nesse caso, o ganho se dá basicamente pelo volume: quanto mais gente usa e por mais tempo, mais receita geram.
Segundo relatório da Comscore, empresa de métricas e análise de audiência, Google e Facebook alcançaram, respectivamente, 99,5% e 95,6% do total de usuários brasileiros de internet, no último mês de agosto. Ou seja, praticamente todo mundo que se conecta à rede acessa esses sites. Tanta popularidade tem seu bônus. O valor de mercado da empresa de buscas e serviços gira em torno de US$ 1 trilhão, enquanto o da rede social é de cerca de US$ 700 bilhões. Os dados são do pregão desta quinta-feira (24) na Nasdaq, bolsa de valores das empresas de tecnologia, em Nova York, cujo ranking é liderado por Microsoft, Apple e Amazon.
Nesse “Top 5” de gigantes, a principal diferença entre as três primeiras empresas na bolsa norte-americana e as duas seguintes é a produção e comercialização de bens materiais, já que mídias sociais e motores de busca não são produtos físicos, não chegam embalados pelos Correios nem estão expostos nas lojas dos shoppings, como os computadores e os celulares, por exemplo. A informação é a riqueza desse segmento, e os dados dos usuários são seu principal ativo.
Na economia desconectada de antigamente era bem mais complicado conhecer e reter informações dos clientes, embora já houvesse a intenção e a prática. Na loja física, pedir número de telefone e data de nascimento do cliente que paga à vista tem a intenção de mandar um feliz aniversário junto com uma promoção de venda. Mais indiscretas são as pesquisas premiadas, em que você concorre a prêmios se contar seus hábitos pessoais e de consumo para uma firma. Certamente, o propósito da sondagem não é ajudar o inquirido a melhorar de vida.
A versão contemporânea guiada pelos bancos de dados em rede mantém a prática, mas com um diferencial importante. O simples clique do usuário em um item da tela já registra informações automaticamente: sua localização, suas preferências de navegação, o que publica e o que apagada, os termos que costuma pesquisar na internet, com quem se relaciona, quais políticos e artistas acompanha e por aí vai.
O que o filme de Orlowski acrescenta é o detalhamento dos métodos, que utilizam as informações pessoais do usuário para fazer com que ele fique online na plataforma o máximo de tempo possível, conversando, curtindo e compartilhando informações de e com outras pessoas conectadas, que fazem o mesmo. Forma-se, então, um ciclo vicioso de oferta e consumo de aspirações e desejos subjetivos, ao qual convencionou-se chamar de engajamento.
Ao humanizar os algoritmos e as reações que eles provocam nos usuários desses serviços, o documentário aproxima os chamados robôs dos seus proprietários e programadores de carne e osso. Tal condição deixa evidente que as plataformas não são meras ferramentas passivas no processo de interação entre participantes.
A possibilidade de qualquer um produzir informação na internet - seja um comentário sobre um produto, uma opinião política ou o compartilhamento de foto -, foi festejada como uma espécie de reação liberal aos controles industriais e governamentais vigentes até o século 20. Algo como uma sofisticada revolução liderada pelas liberdades individuais. No livro “A riqueza das Redes” (Yale University Press, 2006), o professor da escola de direito na Universidade de Harvard Yochai Benkler atribui a essa nova economia um caráter evolutivo da democracia, da justiça e do consumo, que redundaria numa sociedade de indivíduos mais autônomos.
O que se vê, no entanto, são corporações cada vez mais poderosas e com mais controles sobre as pessoas por conhecerem em profundidade suas alegrias e tristezas. Os abusos já foram tantos e em tantas direções que leis de proteção de dados pessoais – como a brasileira LGPD - pipocaram em todas as partes do mundo civilizado nos últimos anos. Até agora, sabe-se pouco sobre os resultados objetivos dessas regras, além do surgimento da figura do advogado de porta de datacenter.
Independentemente do desfecho das iniciativas protetivas, é certo que o assunto precisa ser discutido e explicado quantas vezes forem possíveis – em filmes, livros, notícias, aulas e parlamentos. Colocar o tema na pauta do dia serve, no mínimo, para alertar o sujeito conectado sobre sua condição de consumidor e de produto ao mesmo tempo. Nessa dualidade, o dilema do usuário é decidir quanto de um está disposto a abrir mão para proteger o outro.
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018) e pesquisador associado ao ESPM MediaLab.
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