Comunicação eficiente depende de processos e convenções
A criatividade da narrativa floresce quando se dá dentro das normas conhecidas
21/05/2020 18h00
Um jovem peixe avistou uma suculenta minhoca nadando e logo abocanhou a refeição aparentemente fácil. Era um anzol, foi fisgado pelo pescador e acabou virando o almoço. Isso aconteceu há cerca de 50 mil anos e vem acontecendo repetidas vezes desde então, pois os peixes, diferentemente dos seres humanos, não conhecem o processo evolutivo da acumulação do conhecimento. Essa característica do saber permite que informações passem por gerações possibilitando avanços para além do que já se sabe.
Esse princípio permitiu a criação de novos tipos de telefones nos últimos 160 anos, por exemplo, chegando aos atuais smartphones. Fosse como os peixes, a humanidade ficaria bancando o Graham Bell (1847 – 1922) por décadas e estaria falando a distância utilizando caixas de madeira com manivelas até hoje. A propósito, o próprio Bell beneficiou-se desse fundamento para evoluir a invenção do italiano Antonio Meucci, este reconhecido como o inventor do telefone, o que ocorreu por volta dos anos 1860.
Se as tecnologias se beneficiam da acumulação do conhecimento para evoluir, a comunicação adiciona outro princípio para ser eficiente: a convenção. Para ser compreendido por quem está do outro lado da linha – seja ela telefônica ou telemática -, é preciso emitir a informação em idioma e termos que o receptor conheça. Quanto mais alinhados os conhecimentos das duas pontas estiverem, mais assertiva será a comunicação. Isso se dá por regras e normas compartilhadas entre todos os que pretendem se comunicar entre si.
A motivação para a criação de alfabetos, ortografias e gramáticas tem sido exatamente essa, favorecer a compreensão recíproca e fugir da ideia bíblica da Torre de Babel que, de tão alta, impedia a compreensão dos idiomas entre seus distantes andares. Crê-se, também, que teria sido um castigo divino a misturar as línguas das pessoas na torre. Fé à parte, o problema da distância da comunicação já foi resolvido pela tecnologia.
Por muito tempo, convenções da alfabetização eram algo reservado a poucos para que pudessem se destacar de muitos. A história está repleta de casos de grupos apartados das normas de comunicação: plebeus, escravos, negros, mulheres, pobres e por aí vai. Minha avó, que viveu no interior de São Paulo na primeira metade do século 20, contava que era proibida pelo pai de aprender a ler e a escrever, pois aquilo “não teria utilidade para uma mulher”. Felizmente, ela não obedeceu e estudou às escondidas.
Muitos anos e reformas ortográficas depois, vivemos atualmente um apogeu da comunicação, tanto em ferramentas – sobretudo pela popularização da internet – quanto em linguagem: passamos a informação por texto, áudio, vídeo, emojis, memes etc. Tudo fruto da acumulação do conhecimento por séculos e de convenções de símbolos informativos entre os emissores e receptores.
No jornalismo, as convenções de estrutura de texto e a adoção de manuais de redação – com origem no século 20 - ajudaram os profissionais a pacificarem alguns conflitos de padrões, dando fluidez na maneira como a notícia é produzida e consumida. Um desses combinados de que mais gosto trata do bloqueio do zero à esquerda em números, especialmente em datas. Afinal, todos sabemos que esse caractere a mais não serve para nada, é nulo.
Histórias tendem a ser assimiladas mais facilmente se os termos e processos do narrar forem de amplo conhecimento das partes envolvidas. Claro, com a devida revisão das descobertas anteriores sempre que novas necessidades aparecerem, já que a língua é viva e se adapta aos tempos e costumes. Mas com o cuidado de observar uma armadilha nessa verdade, que pode ser utilizada para fisgar peixes em anzóis de ignorância.
Rever ou desprezar convenções depende de motivações e critérios claros e devidamente compartilhados socialmente. Caso contrário, só um grupo vai deter esse conhecimento e poderá utilizá-lo para oprimir os demais por anos. E a ferramenta adequada para se fazer essas revisões é a educação. A evolução resulta da consciência de que somos seres inconclusos e, por essa razão, “a educação torna-se uma absolutamente indispensável aventura”, como descreveu o educador Paulo Freire em palestra na Universidade de Northern Iowa, em 1996, posteriormente publicada no livro Pedagogia da Solidariedade (Paz & Terra, 2009).
A criatividade do profissional de educação e de comunicação floresce exatamente quando ela se dá dentro das normas vigentes – sejam normas globais, como alfabetos, ou locais, como manuais de redação -, até para que não se perca tempo precioso com o que já funciona e se possa embarcar em novas aventuras, que serão posteriormente convencionadas, se funcionarem, ou descartadas, se não. Dessa maneira, pode-se tocar o trem da evolução sem morder iscas, pois já se sabe que minhocas não nadam. Exceto para quem for peixe.
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018).
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