Comercial e editorial separados, conduta ética compartilhada
Nas empresas jornalísticas, é desejável que venda de anúncios e seleção de pautas caminhem de forma independente, mas seguindo os mesmos princípios e valores
25/02/2021 14h47
Minha primeira experiência no jornalismo profissional foi em um caderno de turismo, há quase trinta anos. À época, preparávamos uma edição sobre Campos do Jordão, município cravado na porção paulista da Serra da Mantiqueira. Minha missão era a de visitar e descrever hotéis e restaurantes, destacando pontos fortes e fracos dos locais a partir de critérios estabelecidos pela chefia e comuns a todos os estabelecimentos.
Enquanto eu, o fotógrafo e o motorista circulávamos pela bela cidade da montanha para produzir a reportagem - sim, naquele tempo fazíamos isso presencialmente e não pelo Google -, uma outra equipe da empresa vendia anúncios para financiar o especial, incluindo nossos salários. Um grupo não acompanhava o trabalho do outro. O resultado só seria conhecido pelas partes envolvidas com o jornal já impresso.
Eis que um dos anunciantes – daqueles que pagam mais caro para ter um espaço melhor na publicação – não gostou da resenha sobre sua pousada e foi babando para cima da equipe comercial, que escalou a bronca para a diretoria de redação. Não deu em nada. Só soube do caso dias depois, quando a então diretora executiva usou a história como exemplo de independência editorial em uma reunião com a equipe.
Avanço três décadas no tempo e vejo nas redes sociais uma discussão sobre a relação entre comercial e editorial nas empresas jornalísticas, mas em posição ligeiramente invertida à da história acima. Agora, parece ser a publicidade que invoca o direito de vender autonomamente anúncios, mesmo que o conteúdo seja contrário ao que pregam as matérias do jornal.
Para a maioria dos jornalistas que sigo, empresas deveriam recusar anúncios contendo informações sabidamente falsas ou enganosas, especialmente aquelas já desmentidas pelas reportagens. O argumento é que a prática macula a credibilidade do veículo e contribui para a desinformação.
Para um outro grupo de profissionais de mídia, entretanto, a independência entre as duas áreas fortalece a credibilidade, pois deixa evidente que não há interdependência entre os setores. Para esse lado do balcão, é legítimo aceitar ou recusar anúncios baseados exclusivamente nas regras do departamento comercial, e não no manual da redação.
De fato, assim como na separação Estado/Igreja - que a duras penas completa 130 anos na República do Brasil -, a autonomia permite que os dois lados se desenvolvam sem que um exerça força desproporcional sobre o outro, gerando liberdade de procedimentos e de escolha. Excessos e equívocos podem, em tese, ser observados e punidos pelo público, pela auto-regulamentação de associações de classe e/ou pelo rigor das leis vigentes.
No entanto, deve-se considerar que as áreas dependem, sim, do trabalho uma da outra. Considerando o exemplo turístico relatado anteriormente, não houvesse reportagem também não haveria espaço publicitário para ser vendido aos comerciantes locais. E se não houvesse interesse comercial da publicidade, o especial nunca teria sido publicado.
Mas as duas divisões devem respeitar a mesma conduta ética para não confundir ou enganar o leitor e o cliente. Embora estejam separadas por procedimentos técnicos específicos, as áreas comercial e editorial de um veículo jornalístico precisam estar alinhadas em relação aos princípios que defendem. Sem credibilidade, as duas atividades padecem.
Aos olhos da audiência, a sinalização de que uma parte da página está embalada como informe publicitário não exime a gestão central de responsabilidades sobre o produto como um todo. Ou seja, os valores corporativos deveriam ser mais que um texto lacrador colado na parede da recepção.
A essa altura dos acontecimentos, leitores de jornais não devem achar que toda publicidade veiculada ali foi precedida de checagem rigorosa das informações nela contidas. Mas coerência é o mínimo que se espera de quem ganha dinheiro fiscalizando e cobrando ações de entes públicos e privados. O grupo que defende dieta vegana de segunda a sexta-feira não pode reunir os parças para um churrasco no fim de semana impunemente.
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação e da cibercultura. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018) e pesquisador associado ao ESPM MediaLab.
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