Fundação Padre Anchieta

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Reprodução/Facebook
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Almoço de domingo na casa da avó.

Cheiro de churrasco no ar, primos menores correndo e derrubando o vaso da mesinha, os cervejeiros falando alto, parentes chegando com o pavê de sobremesa, a TV ligada num looping de shows populares, uma tábua de linguiças em rodelas e asinhas de frango tostadas atravessando a sala, migalhas de pão francês no chão, o gato observando sonolento e entediado do alto da estante e a avó comandando aquela nave louca cheia de familiares.

Enquanto isso, você sofre profundamente porque teve que sair do seu quarto num domingo, sendo que foi dormir às 3h da manhã jogando e assistindo vídeos. Tudo que você mais queria agora, era o conforto da sua cama. Ou então, ser um gato e fugir para a estante mais alta pra poder dormir também. Os gatos são sábios.

Ok, você ama sua família e ama churrasco, mas, nos últimos tempos, tem achado tudo um tédio. A adolescência chegou e precisa ser respeitada. Mas como seus parentes não ligam muito para esses conceitos, é melhor você procurar uma passagem para Nárnia e evitar que alguém mande você ir para a cozinha picar tomate pro vinagrete ou, pior, queira dar palpite na sua vida.

Eis que você percebe que não tem ninguém no sofá do canto da sala. Quer dizer, tem a sua bisavó cochilando numa poltrona ali do lado, mas ela só vai acordar quando levarem um prato de comida até ela. Por isso, se você ficar imóvel, com os olhos fixos no celular e com os fones de ouvido, ninguém vai te ver por um bom tempo.

E lá vai você vestir a capa da invisibilidade, mergulhar no buraco confortável de couro sintético coberto com capinha florida e curtir seu TikTok em paz.

Mas... nem tudo sai como planejado. Depois de meia hora de puro prazer, você baixa a guarda e levanta o rosto na direção do quintal. Ah, soldado, esse erro foi fatal! Quem diria? Caiu na sua própria armadilha, pois acabou fazendo contato visual com a mais atemorizante parente que pode existir: a esposa do tio do pavê.

Ela existe em todas as famílias. Desconfia-se, inclusive, que seja ela a responsável por levar o tal pavê em todas as festas familiares, para que seu marido, em algum momento, faça a abominável piadinha: “é pavê ou é pá cumê?”.

Ela é aquela parente que você só encontra nas festas e que te trata como se ela fosse uma deusa com superpoderes, grande conhecedora da vida. Adora te dar conselhos que você não pediu, te julgar sem te conhecer e ainda te pressionar a falar o que você não quer.

Para seu desespero, ela abre um sorriso sádico e vem caminhando, em câmera lenta, na sua direção.

Seu coração acelera, a sua respiração fica curta e você sente a testa ficar gelada. Brotam gotas de suor nas suas mãos. Será que dá tempo de correr? Você olha pro lado e, sem acreditar, percebe que alguém colocou um pufe para sua bisavó apoiar os pés, e isso está bloqueando o seu caminho.

Bom, você vai ter que pular. Mas, antes de dar o impulso, como por instinto, percebe que alguém está te encarando: é o gato no alto da estante! Por telepatia, ele faz você lembrar o quão desastrado é. Derrubar sua bisavó da poltrona vai atrair a família inteira na sua direção. Daí, o seu domingo termina num hospital com a bisa de perna quebrada.

O gato tem razão. É melhor fingir de morto, se ajeitar no sofá e focar na tela do celular. Quem sabe a sua tia tem um lapso de noção e percebe que você é anti-social e não quer contato naquele momento?

Ledo engano. Ela ignora seus sinais, se aproxima, dá a volta e senta no encosto do seu sofá. Como se não bastasse esse contato físico, ela avança e tira o fone do seu ouvido, faz um cafuné na sua cabeça e, sem dó nem piedade, vem com uma pergunta que apavora os adolescentes:

- “E as namoradinhas?”

Por quê? Por que, meu Deus? Por que sempre tem alguém pra perguntar de namorado, quando a única coisa que você quer na vida é jogar Minecraft? Vida de adolescente é cobrança o tempo inteiro, é pressão de dentro pra fora e de fora pra dentro. Já é difícil lidar com esse turbilhão de sentimentos e sensações, domar os hormônios e aceitar tantas mudanças, e ainda tem uma tia que vem cobrar relacionamento.

Adolescente está, antes de tudo, tentando se relacionar consigo mesmo. Está tentando se encontrar. Não dá pra amar se não souber se amar.

E se o jovem não souber o que gosta? E se não for namoradinha, for namoradinho? E se forem os dois? E se não for ninguém? Tudo tem seu tempo, e esse tempo pode variar muito.

Em meia hora num almoço de família, muita coisa pode acontecer na cabeça de uma pessoa que está passando pela adolescência. É uma geração que enfrenta a ansiedade, a depressão, o pânico e o estresse gerados pelo mundo virtual.

O adolescente deve ser acolhido pela família para que toda essa batalha interna seja amenizada. Quer travar uma conversa informal? Então, pergunte sobre o que ele quer conversar, fale sobre seus interesses. Por que falar o mesmo de sempre em todos os churrascos?

Tudo tem sua hora. Tudo tem seu lugar. Almoço de domingo em família pode ser muito legal se todos se respeitarem e respeitarem as diferentes gerações que estão compartilhando o mesmo espaço.

Ah, e pra terminar este relato, o gato salvou o adolescente, pulando da estante bem em cima do sofá. Assustou a tia, que caiu do encosto e fez um barulhão, que acordou a bisa, que gritou “Bingo!” - porque ela estava sonhando que preenchia uma cartela. A família toda correu pra sala e o jovem correu pra churrasqueira, pra almoçar tranquilo com o bichano.

Quer saber? Os adultos deveriam ter a sabedoria dos gatos, que foi o único que observou o que era o melhor a fazer naquele dia.

Helena Ritto é atriz, contadora de histórias, arteeducadora, apresentadora, atriz de voz e escritora.