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"Gostaria de ver explicarem nas favelas como a política brasileira é baseada num grande pacto para manter privilégios de homens brancos e ricos", escreve a historiadora Ynaê Lopes dos SantosO Brasil incorporou a silenciosa marginalização racial como sua pedra de toque, jogando para favelas filhos, netos e bisnetos de negros escravizados e insistindo que a essas favelas a Independência dificilmente chegaria."Imagina eu explicar isso na favela."

Essa foi mais uma das falas preconceituosas (para dizer o mínimo) do presidenciável Ciro Gomes. A frase foi proferida numa reunião com empresários – que ele mesmo chamou de "comício para gente preparada" –, ocorrida na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), no último dia 31 de agosto.

Ainda que Ciro tenha chamado de "má-fé" a onda de críticas ao seu comentário, advogando que ama e respeita a sabedoria popular, essa não foi nem a primeira, nem a segunda vez que o político fez uso desmedido de seu privilégio de homem branco para falar sobre pessoas que ele provavelmente não enxerga de forma horizontal.

Apenas três dias antes, o mesmo Ciro Gomes disse durante o debate dos presidenciáveis na Band que "o Brasil não é o fundão da África" para justificar que aqui nós temos comida (mesmo que ela seja mal distribuída). Esse jargão – que insiste em tomar o continente africano como um bloco homogêneo – já havia sido usado pelo candidato no programa Roda Viva, da TV Cultura, no qual ele demonstrou toda sua desinformação sobre as diferentes formas como governos africanos lutaram contra a pandemia, que podem ter contribuído para o número menor de mortos por covid-19 em relação a outras partes do mundo.

Novamente, uma enxurrada de críticas foi feita ao candidato, sendo uma das mais contundentes um vídeo produzido por Vençam, um ativista Pan-africanista da Guiné Bissau, que administra perfis no Instagram e no TikTok de nome Visto África.

Mas não é exatamente sobre a postura arrogante e ignorante de Ciro Gomes que quero falar aqui. E sim, sobre o que ela representa.

O debate no qual a África foi mais uma vez tratada como um país foi o mesmo em que vimos apenas candidatos brancos à Presidência da República. É preciso pontuar que havia diferentes identidades de gênero e de classe em jogo. A história recente do país demonstra que quando um ex-operário fabril e uma mulher ocuparam a Presidência, mudanças palpáveis foram implementadas, sobretudo no que diz respeito à luta contra a desigualdade socioeconômica.

A presença de negros, negras e indígenas na política brasileira é ínfima desde o fatídico 7 de setembro de 1822. Exatos 200 anos se passaram, e mantemos uma espécie de tradição na qual gente não branca parece não ser bem-vinda nos mais altos escalões da política. E o pior é que essa repulsa acabou por naturalizar a ideia de que, no Brasil, o exercício político só é feito pelos mesmos brancos de sempre.

Insistimos numa história nacional que começa e termina com D. Pedro 1º. Não com ele, exatamente, mas com a perspectiva histórica que ele ajudou a construir e da qual foi um importante espécime. Um país cuja liberdade e soberania estiveram alicerçadas à escolha pela escravidão de gente negra, mesmo que isso representasse contrariar as leis da própria nação. Um país, cuja proclamação da República não fez uso da instituição escravista (recém-abolida), mas incorporou a silenciosa e aguda marginalização racial como sua pedra de toque, jogando para as favelas os filhos, netos e bisnetos daqueles pretos (muitos deles escravizados), e insistindo que a essas favelas a Independência do 7 de setembro de 1822 dificilmente chegaria.

As escolhas políticas que sustentam o descaso histórico dos poderes públicos brasileiros e que fizeram das favelas uma espécie de anti-herói do país são as mesmas que nos ajudam a compreender a ausência de candidato/as negro/as no debate dos presidenciáveis. Ausência que evidencia como a política brasileira foi e continua sendo organizada a partir de um grande pacto estruturado para manter os privilégios dos homens brancos e ricos, abrindo pequenas concessões.

Era isso que eu queria ver o presidenciável explicar para a favela.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.