Após a eleição mais difícil dos últimos tempos, a democracia venceu, e a maioria escolheu o que Lula chamou de "direito de ser feliz". É preciso reconstruir o Brasil, e o presidente eleito está à altura do desafio.Essa foi a eleição mais difícil dos últimos tempos. Talvez, a mais difícil desde a instauração da República brasileira.
Temos um novo presidente eleito com mais de 60 milhões de votos, um feito nunca antes visto na história deste país. Seu adversário também teve uma votação expressiva, de mais de 58 milhões de votos, fazendo deste um momento indiscutivelmente polarizado.
Mas não se trata de uma polarização qualquer. Estamos tratando de duas percepções de mundo muito distintas. Basta olharmos para as ações mais radicais que antecederam o segundo turno, quando as pesquisas de intenção de voto já indicavam a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva.
Tivemos uma deputada eleita fazendo uso escancarado de seu privilégio de mulher branca, desrespeitando a legislação eleitoral e se sentindo no direito de correr armada com seus seguranças atrás de um homem negro. O motivo: divergência política.
No dia da eleição, uma operação ilegal foi orquestrada pela Polícia Rodoviária Federal, que realizou blitz em centenas de estradas brasileiras, sobretudo na região Nordeste do país, numa ação que dificultou que muitos cidadãos votassem.
Imagino que, assim como eu, entre sábado (29/10) e domingo, brasileiros e brasileiras tenham recebido uma quantidade avassaladora de mensagens em suas redes sociais, que, de tão absurdas, mais pareciam ser fake news. O clima de tensão e instabilidade criado propositalmente não só colocou nossos nervos à flor da pele como pôs à prova o bom andamento do jogo democrático.
E, como o Brasil não é para principiantes (já não sei quantas vezes escrevi essa frase por aqui), mesmo depois de oficialmente decretada a vitória de Lula, a paz não voltou a reinar.
"Não saber perder"
O candidato derrotado e atual presidente quebrou as regras de etiqueta e não cumprimentou seu oponente, preferindo se recolher cedo. Como se isso não bastasse, demorou mais de 36 horas para fazer seu pronunciamento oficial. Foram horas foram marcadas por manifestações bolsonaristas fechando rodovias em todo o país, ações de grupos de apoiadores do presidente pedindo recontagem de votos, o fechamento do STF, intervenção militar, num claro movimento antidemocrático, que também pode ser facilmente taxado como "não saber perder".
E, quando finalmente veio à público, ainda que tenha afirmado seguir a Constituição, o presidente não mencionou sua derrota, fez uma menção falaciosa sobre os movimentos de esquerda e uma fala breve, apenas para seus seguidores, lembrando o lema que travessou seus quatro anos de governo, e que se agudizou na campanha eleitoral: "Deus, pátria e família".
Não é de hoje que "Deus, pátria e família" se fazem presentes no campo político brasileiro, geralmente sendo mobilizados pela ala mais conservadora do país. Mas é preciso lembrar que esse slogan foi criado pelo integralismo ultraconservador de Plínio Salgado, um movimento que, há 90 anos, defendia abertamente os pressupostos do fascismo.
Vitória da democracia
É preciso lembrar disso, para dimensionar o tamanho da vitória do último dia 30 de outubro. O que vimos e o que ajudamos a construir não foi apenas a vitória de Lula, mas sim a vitória da democracia. Por isso que boa parte do mundo foi dormir aliviada no último domingo.
Apesar do uso espúrio da máquina do governo – que ficará mais evidenciado nos próximos meses –, o Brasil continua sendo uma democracia. A maior parte dos brasileiros escolheu aquilo que Lula chamou de "direito de ser feliz".
Talvez tenhamos nos esquecido disso, mas é importante, é saudável e é bom ser feliz!
Só que para essa felicidade ser maior e mais profunda, é preciso que Lula cumpra o que prometeu em seu primeiro discurso como presidente eleito: ele precisa governar para todos os brasileiros. E ao fazer isso, ele e toda sua equipe precisam se lembrar de que há quase um século o fascismo ronda a política brasileira, mas que nos últimos anos essa relação ganhou um peso expressivo. Um fascismo que cingiu o país, que alimentou e fez uso da pobreza e da miséria. Um fascismo que, como erva daninha, precisa ser cortado pela raiz. E como estamos vendo, isso não se faz da noite para o dia.
Há um país para ser reconstruído, e esse desafio é imenso. Mas, graças à democracia, também temos agora um presidente à altura de tal feito.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
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