Presidente inicia terceiro mandato em cerimônia marcada por simbolismos e com discurso focado na desigualdade social. Com ausência de Bolsonaro, entrega da faixa foi feita por representantes do "povo brasileiro"Empossado em uma cerimônia marcada por simbolismos, Luiz Inácio Lula da Silva iniciou seu terceiro mandato como presidente da República neste domingo (01/01) sob a promessa de reerguer o "edifício de direitos e valores nacionais" construído a partir da Constituição de 1988 e combater a fome e as desigualdades sociais.
Na ausência de Jair Bolsonaro, seu antecessor no cargo, e do vice dele, Hamilton Mourão, Lula subiu a rampa do Planalto ladeado pelo cacique Raoni Metuktire, uma das principais lideranças indígenas do país, e outros sete brasileiros: uma criança negra, uma catadora, um metalúrgico, um professor, uma cozinheira, um jovem com deficiência e um ativista político. Foi das mãos deste mesmo grupo, uma evocação do "povo brasileiro”, que Lula recebeu a faixa presidencial.
Lula desfilou a bordo do Rolls Royce presidencial, que foi ocupado também pela primeira-dama, Rosângela Silva, a Janja, e pelo vice-presidente Geraldo Alckmin e sua mulher, Lu Alckmin.
Para Magna Inácio, professora de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e colunista da DW Brasil, a imagem do presidente e seu vice desfilando juntos no Rolls Royce reforça a imagem de um governo de frente ampla, que está disposto a compartilhar o poder, enquanto o rito de passagem da faixa presidencial com brasileiros comuns é um emblema das minorias desassistidas durante o governo Bolsonaro.
"Há toda uma simbologia do governo, em duas direções: partidária, com o Alckmin no carro nesse deslocamento entre Congresso e Palácio do Planalto e o elemento do compartilhamento do poder, mas também um compartilhamento de poder com garantia de espaço para minorias nesse governo. Isso não é novidade nos governos do PT, mas ganha um sentido especial após o governo Bolsonaro pelas restrições que foram impostas a essas minorias, comprometendo políticas públicas que são garantidoras de direitos, de cidadania”, explica a docente da UFMG.
Tanto Bolsonaro, que abandonou a Presidência e deixou o país no último dia 30, quanto Mourão se recusaram a participar da cerimônia, contrariando um rito tradicional da transição de poder no mais alto cargo da República.
Segundo Inácio, a principal mensagem da posse é que a "agenda econômica de redução da desigualdade, de enfrentamento da fome e de problemas econômicos que ampliaram essa desigualdade” deve ser a grande prioridade do novo governo, aliada à inclusão de minorias "que nos dizem na ponta como essas desigualdades se manifestam".
Ela avalia que a aprovação da PEC da Transição, que garantiu a continuidade de políticas de transferência de renda e abriu espaço nas contas públicas, deixou Lula em posição mais confortável para priorizar a questão social em seus pronunciamentos no Congresso, durante a assinatura do termo de posse, e no parlatório do Palácio do Planalto, quando falou a apoiadores e criticou Bolsonaro.
Posse pela terceira vez é superação de Lula e do PT
Além de Janja e da comitiva que brasileiros que acompanhou Lula e Alckmin na subida da rampa do Planalto, o presidente empossado foi escoltado no trajeto também por Resistência, uma cadela adotada pela primeira-dama na época em que o petista esteve preso em Curitiba por condenações no âmbito da Operação Lava Jato.
As condenações acabaram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal, que ainda declarou a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro. Lula, que chegou a ficar 580 dias preso, acabou impedido de disputar a eleição presidencial de 2018.
"A cachorrinha é um símbolo de superação, porque ela representa a trajetória de um líder que foi candidato e acabou impedido em 2018, teve seus direitos garantidos após a anulação dos processos e não só se candidata na eleição seguinte como sai vitorioso dela”, afirma Inácio. "É um momento não só de superação pessoal, mas também institucional, na medida em que parte da Operação Lava Jato foi revista. Dialoga também com a história recente do PT, a própria experiência de governo interrompido da Dilma Rousseff.”
"O outro lado da história é a recusa do Bolsonaro em cumprir o decreto que prevê a passagem da faixa presidencial. Esse rito foi quebrado num ato que tem um agravante para a democracia brasileira se a gente pensar que os presidentes que se recusaram a fazer isso – Floriano Peixoto, João Figueiredo e agora Bolsonaro – são todos militares, com dificuldades claras em lidar com a democracia e transferência de poder para civis. São momentos diferentes, mas é muito emblemático que esse momento de negação se refira também a algo que é tão sensível para a democracia brasileira, que é a relação entre militares e civis.”
Por outro lado, Inácio diz ter se surpreendido com a fala do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, que discursou logo após Lula em defesa da reforma tributária e de uma agenda econômica encampada pelo Legislativo. Foi um gesto ambivalente, na avaliação da cientista política. "É uma sinalização muito clara de que o novo governo se inicia em condições que não são fáceis – apesar do capital político, apesar de ser o terceiro mandato, de Lula ser liderança experiente. Ele sabe que essa divisão do país e o fortalecimento recente do Congresso cria um cenário muito diferente daquele no qual ele está acostumado a governar.”
Evento transcorreu com tranquilidade
Diante de temores de atentados, o evento foi realizado sob esquema de segurança que restringiu e dificultou a circulação do público na Esplanada dos Ministérios.
Às vésperas do Natal, forças de segurança foram acionadas para neutralizar um artefato explosivo colocado em um caminhão de combustível por um homem que mais tarde declarou em depoimento ser apoiador de Bolsonaro.
Apesar disso, antes mesmo da abertura da Praça dos Três Poderes ao público, às 8h, apoiadores do presidente já acampavam em frente aos portões para garantir uma boa visão da cerimônia. Às 11h, quem tentava chegar ao local tinha que enfrentar filas longas sob um sol e calor intensos.
Por volta desse horário, e alguns metros antes da revista, Nallyja Fernanda, 19, descansava sob a sombra de uma árvore. "Estou aqui para dar posse ao projeto no qual a gente acredita, que é uma construção do povo. A gente acredita que está dando não só posse ao presidente Lula, mas ao povo”, afirma a assentada e militante do coletivo de juventude do MST de Imperatriz (MA). Filha de agricultores, ela encarou 30 horas de viagem a bordo de um ônibus para ver o presidente de perto.
Mais à frente, uma pessoa abria caminho apressada pela multidão enquanto abanava ruidosamente um enorme leque vermelho. "Tenho um compromisso com o presidente Lula”, disse o humorista Mayzon Paulo, 28, criador da persona Mulher Bat Gut, que viajou de Maracanaú (CE) a Brasília de avião. "É minha primeira posse. Para nós, artistas, é uma vitória ter o Ministério da Cultura de volta. Quando Lula foi eleito a primeira vez, eu era pequenininho. Era meu sonho estar aqui vivendo esse momento da democracia, da alegria, de união e de amor – e na expectativa de que seja um governo para todos os brasileiros. O que falta às pessoas é oportunidade, e acho que esse governo vai dar isso ao povo.”
"É um momento importante para o país, histórico. E a gente não se contenta em ver da televisão. Sentir essa emoção, ver essa diversidade de pessoas, é inesquecível”, afirma a bancária aposentada Vanja Albuquerque, 58, que saiu de João Pessoa (PB) de carro com o marido e havia chegado cedo à Praça dos Três Poderes.
"A gente vê essas pessoas no sol, se antecipando. Toda essa expectativa é a esperança por um futuro melhor”, afirma o professor da rede pública e dirigente do PT do Distrito Federal Erivaldo Sousa, 59.
REDES SOCIAIS