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Enlatados em gôndola de supermercado: apesar dos efeitos nocivos comprovados, alimentos ultraprocessados estão de fora da prosposta de imposto seletivo sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente

A reforma tributária em tramitação no Congresso colocou na mesa uma discussão que vai além do impacto fiscal da simplificação de tributos sobre consumo no país. Aliás, ela trouxe a mesa dos brasileiros para a discussão, ao definir novas formas de pensar a taxação de alimentos e bebidas.

Deputados do grupo de trabalho que trata do tema apresentaram nesta quinta-feira (04/07) uma proposta de regulamentação da reforma, prevista para ser votada no plenário da Câmara na próxima semana. Ela detalha, por exemplo, sobre quais produtos incidirá o imposto seletivo, que ganhou a alcunha de imposto do pecado por taxar produtos prejudiciais à saúde das pessoas e ao meio ambiente.

Desde a primeira proposta de regulamentação, apresentada em abril pelo governo federal, é ponto pacífico que produtos como cigarros, bebidas alcóolicas e refrigerantes devem ser taxados com o imposto seletivo. No entanto, uma queda de braço tem sido travada no Congresso em torno do entendimento do que é alimento prejudicial à saúde – e ao meio ambiente.

De um lado, grupos da sociedade civil e setores do governo defendem maiores impostos sobre itens ultraprocessados, amparados em dados sobre os malefícios desses produtos à saúde. Do outro, representantes da indústria negociam a preservação de incentivos e argumentam que taxar alimentos enquanto pessoas passam fome no país não faz sentido. No relatório apresentado nesta quinta-feira, os ultraprocessados ficaram de fora da taxação seletiva, com exceção do refrigerante.

“Taxar ultraprocessados não vai resolver e só vai fazer a população pagar mais caro pelo alimento”, disse o presidente da ABIA (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), João Dornellas, durante audiência pública na Câmara sobre o tema, em junho. “Segundo a OMS, a obesidade tem causas multifatoriais: fatores genéticos, sedentarismo, alimentação desequilibrada. Isso não tem nada a ver com o local em que o alimento é feito, se é na indústria ou se é em casa”, defendeu.



"Todo mundo come porque é barato, não porque é bom"

Há uma campanha para minimizar os efeitos de ultraprocessados em curso parecida com a do lobby do tabaco nas décadas de 1990 e 2000.

Segundo a secretária de Segurança Alimentar do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Lilian Rahal, a indústria resiste bravamente à associação desses produtos ao avanço de doenças relacionadas à alimentação.

"Estamos num momento crucial de confrontar o discurso de que o ultraprocessado é bom. Não é saudável, todo mundo come porque é barato, não porque é bom. Não é comida de verdade. As discussões no Congresso vão ser bastante definidoras. A gente tem uma janela de oportunidade grande agora de mudar o padrão de consumo da população mais pobre", afirmou Rahal à DW.

O imposto seletivo também é alvo de disputa na indústria de agrotóxicos. Organizações da sociedade civil querem conter o avanço do setor no Brasil sobre os alimentos, ampliado após a aprovação da Lei dos Agrotóxicos em dezembro de 2023. Na data, o Brasil já calculava uma média de 545 novos registros desse tipo de produto químico por ano.

“É inadmissível que esses produtos sejam beneficiados do ponto de vista tributário e seu consumo, incentivado (...). O próprio Estado brasileiro já reconhece formalmente a relação dos agrotóxicos como causadores de doenças. Está especificado na Lista de Doenças Relacionadas a Trabalhoque os agrotóxicos são agentes ou fatores de risco para 34 doenças diferentes”, argumentou o secretário executivo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Thiago Barreto, durante audiência pública na Câmara.



Nova cesta básica

A proposta de regulamentação zera ainda impostos para 15 alimentos que compõem a nova cesta básica nacional. Eles foram escolhidos a partir do Guia Alimentar da População Brasileira, uma orientação elaborada pelo Ministério da Saúde desde 2006 com diretrizes para uma alimentação equilibrada no país, consideradas as diversidades culturais e regionais.

Entre os produtos com alíquota zero estão farinhas em geral, arroz, leite, manteiga, feijões, raízes, tubérculos, café, entre outros. Nessa lista, porém, também entrou a margarina, feita com gordura vegetal ultraprocessada, sob a justificativa de fazer parte do hábito alimentar da população mais pobre. Açúcar também ficou neste rol de alimentos.

Outra vitória dos alimentos ultraprocessados foi a do macarrão instantâneo e dos compostos lácteos, como o leite fermentado, o requeijão e o iogurte. Eles entraram em um rol de alimentos com imposto reduzido em 60%, o mesmo que incidirá sobre o sal, a farinha e os cereais.

A carne também ficou nessa lista de redução de 60% do imposto. Havia uma expectativa de que o produto tivesse o imposto zerado, mas os deputados avaliaram que o impacto de uma desoneração da proteína do boi e do frango seria muito grande na tarifa cheia do imposto. Com isso, a carne deve entrar em um sistema de cashback apenas para as famílias de baixa renda.

Na prática, se o modelo proposto for aprovado, a população com renda mensal per capita de até meio salário mínimo (R$ 706 em valores atuais) vai pagar o mesmo imposto dos mais ricos sobre a carne, mas receberá parte desse valor de volta. O modelo ainda não foi definido, mas a avaliação é que o recurso possa ser depositado via Cadastro Único e valha também para o consumo de outros bens e serviços.

"A gente tinha uma expectativa de imposto seletivo sobre os ultraprocessados de uma forma geral. Era uma proposta do Ministério da Saúde e entrou só para bebidas açucaradas. O debate no Congresso é muito duro. Não é uma questão dos parlamentares, mas da indústria mesmo, que vem muito agressiva, distorcendo fatos", afirmou Rahal, do MDS.



Ultraprocessados cada vez mais presentes na dieta

"Não coma nada que sua bisavó não reconheceria como comida." A máxima do escritor norte-americano Michael Pollan, autor de livros como " Em Defesa da Comida", serve bem para ilustrar o que são alimentos ultraprocessados.

Esses produtos passam por processos industriais em que são adicionadas substâncias artificiais como corantes, conservantes, espessantes, emulsificantes, aromatizantes, entre outros aditivos que se apresentam com nomes complicados no rótulo. Além disso, esses produtos geralmente têm alto teor de sódio, gordura e açúcar, além de sabor e cor muito mais intensos do que o existente na natureza.

Até um quinto das calorias consumidas por brasileiros vem de alimentos ultraprocessados, o que contribui para o avanço de doenças crônicas como diabetes, hipertensão arterial e obesidade, de acordo com dados do Núcleo de Pesquisa Epidemiológica em Nutrição e Saúde Pública da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP).

O excesso de peso é observado em mais da metade dos brasileiros adultos, e se junta ao problema da falta de alimento em si – mais de 3 milhões de pessoas não têm o que comer diariamente no Brasil. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 27,6% das casas brasileiras sofrem algum nível de insegurança alimentar.

Entre os problemas enfrentados por essa população, está a fome oculta, que ocorre quando a carência de nutrientes não é aparente. A pessoa pode até ingerir a quantidade de calorias necessárias e matar a fome, mas sua dieta é pobre em nutrientes e não alimenta.

O consumo de ultraprocessados levou à morte de pouco mais de 57 mil adultos entre 30 e 69 anos em 2019, afirma o NUPENS/USP. O núcleo de estudos concluiu que uma redução de 10% a 50% do total de alimentos ultraprocessados consumidos no país teria o potencial de salvar até 29,3 mil vidas.



Caminhos para melhorar a alimentação

De acordo com a pesquisadora em alimentação Thalita Kalix Garcia, da Hertie School, em Berlim, o país avançou em alguns tópicos nos últimos anos. Tem um Guia Alimentar que é referência internacional. Em 2022, a Anvisa aprovou um novo modelo de rótulo que avisa, na frente do produto, se há excesso de açúcar, sódio ou gordura, e padronizou tabelas nutricionais, que precisam exibir a quantidade de porções que contém a embalagem, por exemplo.

Segundo ela, ainda há uma relação dos brasileiros com alimentos industrializados como um símbolo de inclusão social e até mesmo segurança alimentar.

A introdução desses produtos na dieta brasileira teve um impacto na perda de conhecimento sobre como preparar alimentos. "É preciso investir em treinamentos, como de merendeiras nas escolas, ou investir em cozinhas comunitárias nesse processo educacional das pessoas entenderem o valor das coisas que estão ali e como processar esses alimentos."

Rahal, do MDS, argumenta que é preciso olhar com cuidado para todas as etapas de uma política efetiva de segurança alimentar: produção, abastecimento, acesso e consumo. A parte da tributação toca sobretudo a fase final, do consumo.

"A gente precisaria ter uma virada de chave para ampliar a produção de alimentos saudáveis, não só produção de grãos e produção animal, mas também alimentos básicos. A gente vê, quando olha os números da série histórica, que o país vem reduzindo a área plantada de alimentos. Eu acho que a nossa política agrícola poderia ser reorientada para um fomento efetivo da produção de alimentos", defende.

Segundo ela, é necessário melhorar o sistema de abastecimento. "O Brasil caminhou no sentido de deixar o abastecimento para iniciativa privada. A gente deixou de ter política de abastecimento no nível nacional."