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Sob as bênçãos da ditadura militar, subsidiária brasileira da Volkswagen criou gado em fazenda no interior do Pará; Ministério Público do Trabalho diz que empreitada dependeu em parte de trabalho análogo à escravidão

Ministério Público do Trabalho diz que montadora foi beneficiária de esquema de tráfico de pessoas numa fazenda no interior do Pará durante a ditadura militar e cobra indenização de R$ 165 milhões. Empresa nega. A Volkswagen do Brasil está sendo acusada perante a Justiça de ter explorado mão de obra em condições análogas à escravidão e se beneficiado de um esquema de tráfico de pessoas em uma fazenda no município de Santana do Araguaia, no Pará, entre os anos de 1974 e 1986.

A ação civil pública, movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), foi ajuizada nesta quarta-feira (04/12). O órgão cobra da montadora uma indenização no valor de R$ 165 milhões por danos morais coletivos.

Em nota divulgada em 2023, a Volkswagen do Brasil disse rejeitar todas as acusações e discordar das "declarações unilaterais dos fatos apresentados por terceiros", e que só teriam sido levadas a conhecimento da empresa três anos após o início das investigações pelo MPT.

A denúncia do MPT se baseia em relatos de "jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e servidão por dívida" na Fazenda Vale do Rio Cristalino.

Segundo o órgão, a propriedade de 139 mil hectares – quase tão grande quanto a cidade de São Paulo – pertencia à Companhia Vale do Rio Cristalino Agropecuária Comércio e Indústria (CVRC), uma subsidiária extinta da empresa.

A propriedade era usada pela Volkswagen para criação de gado e extração de madeira durante a ditadura militar.

As denúncias chegaram ao órgão em 2019 pelas mãos do padre Ricardo Rezende Figueira, que, à época, era coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) para a região do Araguaia e Tocantins da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Segundo o MPT, funcionários eram recrutados por atravessadores sob falsas promessas para fazer o serviço de roçagem e derrubada da mata. Eles viviam na fazenda em alojamentos insalubres, sem acesso a água potável e alimentos suficientes, nem a tratamento médico nos casos de malária. Também seriam impedidos de deixar o local por vigilantes armados, e sujeitos a humilhações e ameaças.

"Dormiam ao relento em barracões improvisados sem qualquer tipo de assistência médica e muitos adoeciam de malária. Os trabalhadores contam que as tentativas de fuga eram castigadas por esses pistoleiros, inclusive que trabalhadores foram mortos, segundo relatos dos trabalhadores, dentro da fazenda", disse o procurador Rafael Garcia à Agência Brasil em 2023.

O MPT afirma ainda que na época em que os fatos denunciados teriam ocorrido, a Volkswagen do Brasil "contou com recursos públicos e benefícios fiscais que ajudaram a alavancar seu negócio de criação de gado[,] fazendo com que se tornasse um dos maiores polos do setor".

Esses benefícios, segundo afirmou o procurador Garcia à Agência Brasil em 2023, seriam da ordem de R$ 700 milhões, em valores atualizados.

Ricardo Rezende, que coordena o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo no Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos e é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chegou a relatar as violações, no ano de 1983, em uma denúncia pública à imprensa.

À Agência Brasil, Rezende disse ter sido posteriormente convidado pela Volkswagen para uma visita à fazenda. "Quando nós, dentro da fazenda, constatamos diversos problemas e tínhamos então mais elementos, porque comprovava os crimes cometidos pela Vale do Rio Cristalino, o senhor [Frederico] Brügger [que gerenciava o local] gritou comigo e me desafiou 'me dê o nome de uma fazenda que faça diferente'", relatou.

A Volkswagen chegou a ser procurada pelo MPT para um acordo, mas acabou se retirando da mesa de negociações em março de 2023.

Ao jornal Folha de S.Paulo, a Volkswagen do Brasil disse que ainda não foi notificada sobre a denúncia e que não comenta processos em andamento.

Colaboração com a ditadura

O presidente da Volkswagen Região América do Sul e Brasil, Pablo Di Si, admitiu em 2017 que havia pessoas, dentro da empresa, que colaboravam com o regime militar (1964-1985). "Nós reconhecemos o que aconteceu na ditadura militar e que foram anos difíceis", disse Di Si, em evento no qual foi divulgado o resultado da investigação interna que apurou a relação da empresa com a ditadura.

O relatório com as conclusões do historiador Christopher Kooper, contratado pela matriz da Volkswagen na Alemanha, foi produzido após instauração de inquérito civil pelo Ministério Público Federal para apurar a responsabilidade da montadora em "graves violações de direitos humanos". A investigação foi iniciada após representação assinada pelas centrais sindicais brasileiras, sindicatos e ex-trabalhadores da empresa, em setembro de 2015. O pedido foi feito com base nas conclusões da Comissão Nacional da Verdade, que acusou a empresa de colaborar com a repressão e discriminar trabalhadores com atuação sindical.

De acordo com o padre Rezende, o historiador Kopper reconheceu que havia trabalhadores submetidos ao sistema de servidão por dívida e que, se houvesse problemas quanto ao pagamento de salário e tentativa de fuga, eles seriam capturados e punidos. Kopper saberia que a empresa era acusada explorar mão de obra análoga à escravidão, mas discordava do termo escravidão, considerando-o uma "metáfora", um exagero.

"Segundo o historiador alemão, houve na fazenda gravíssimos problemas de não pagamento, de pessoas armadas e que houve servidão por dívida e disse que era exagero falar em trabalho escravo. Eu não sei exatamente o que é trabalho escravo para o historiador alemão, mas para nós [pela lei brasileira] servidão por dívida é escravidão", disse Rezende à Agência Brasil em 2023.

ra (Agência Brasil, ots)