As pessoas na Europa às vezes parecem se esquecer que acordos de livre comércio podem gerar prosperidade e barrar tendências autoritárias. Os argumentos contrários não só são hipócritas como também eurocêntricos.A União Europeia e o Mercosul concordaram em criar uma zona de livre comércio. É uma notícia muito boa – para todos os países envolvidos. E isso por dois motivos.
Primeiro: comércio e intercâmbio econômico geram ganhos para quem participa. Embora essa seja uma máxima frequentemente questionada, já há 200 anos o economista David Ricardo comprovou que o comércio entre países – no caso analisado por ele, entre Portugal e a Inglaterra – pode ser vantajoso para todos os envolvidos.
No caso da Europa e do Mercosul não será diferente. Veja o exemplo do Brasil: o acordo provocaria um crescimento de 0,46% no PIB da maior nação do Mercosul até 2040 graças a tarifas aduaneiras mais baixas e melhores condições de investimentos, segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mais crescimento significa, por exemplo, maior arrecadação e mais empregos.
Segundo: o acordo foi negociado por democracias. Estamos falando de governos eleitos, e não de autocratas. É um sinal importante num momento em que blocos autoritários estão em ascensão mundo afora e democracias estão perdendo espaço. A união de mais de 700 milhões de pessoas – responsáveis por um quarto do PIB mundial – faz do acordo UE-Mercosul uma das poucas zonas de livre comércio democráticas do mundo.
Esses são os triunfos evidentes do acordo.
Mas também é preciso dizer: cinco anos atrás, em 2019, os governos da Europa e da América Latina estiveram exatamente neste mesmo ponto. As duas zonas de livre comércio haviam chegado a um acordo – só que depois tudo travou.
Um presidente, Jair Bolsonaro, que não dava a mínima para a proteção ambiental, virou pretexto para a implosão do acordo. Na Europa, uma aliança poderosa entre ambientalistas e fazendeiros conseguiu atrasá-lo – com argumentos que pareciam convincentes à primeira vista, mas que acabaram se revelando hipócritas e eurocêntricos.
Ambientalistas na Europa afirmam que o acordo sacrifica o meio ambiente na América do Sul, evocando as florestas tropicais em chamas. O mesmo argumento é usado por associações de produtores na Europa para questionar os padrões de produção de alimentos na América do Sul. Nada de carne de boi vinda de áreas incendiadas, exigem eles.
Mas esse raciocínio é capenga. Ora, esses mesmos produtores rurais gostam de comprar farelo de soja em grandes quantidades da América do Sul para a engorda de suínos e aves na Europa – e aí geralmente não se preocupam com sua origem.
Ambientalistas europeus, por sua vez, ignoram que muitos brasileiros defensores das florestas e dos indígenas até saúdam um acordo com a Europa, afirmando, com razão, que um pacto desses dificultaria retrocessos como os vistos no governo Bolsonaro na proteção dos povos tradicionais e do meio ambiente.
Os ambientalistas e produtores europeus conseguiram restringir a crítica ao acordo UE-Mercosul aos seus interesses. E isso apesar de o texto estipular que a quantidade extra de produtos agrários enviados à Europa da América do Sul não vai passar de 220 gramas de carne bovina por ano e por europeu – um hambúrguer grande, e isso só depois de cinco anos.
As oportunidades abertas pelas cadeias de valor complementares e pelo mercado comum entre a América do Sul e a Europa são muito maiores do que a ameaça para os produtores rurais europeus. E vale lembrar que produtores de alimentos europeus também poderão exportar para a América do Sul mais facilmente mercadorias com denominação de origem protegida.
Ainda há um longo caminho pela frente até que o acordo entre em vigor. Tanto o Conselho Europeu quanto o Parlamento da União Europeia precisam aprová-lo. Para passar no Conselho, precisará do apoio de ao menos 15 dos 27 países da UE que representem ao menos 65% da população. França, Áustria e Polônia não são os únicos que rejeitam o tratado; partidos à direita e à esquerda na Europa desaprovam o texto, e outros críticos serão mobilizados até lá. A ratificação pelos parlamentos na América do Sul também não está garantida.
Estou ansioso para saber se e quando a Europa enviará os primeiros carros e camemberts à América do Sul – e quando veremos aportar na Europa o primeiro contêiner com vacinas e cosméticos brasileiros livre de impostos.
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Há mais de 30 anos o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul. Ele trabalha para o Handelsblatt e o jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.
O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.
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