A Grande Orquestra do Mundo

A comédia dos erros - Shakespeare

Adaptação da peça do autor


14/04/2022 23h59

Ouça o programa completo: 


Alô? Tem alguém aí? Estou falando contigo, atento ouvinte. Tomo-te por tema de minhas invocações, e rogo que me acompanhes nesta travessia pelas ondas do mar. Casei-me em união estável com os sonhos, e agora, depois de sonhá-los todos, já não sei mais se estou dormindo ou desperto. É para isso que preciso de ti, atento ouvinte: para que me digas se o que vejo é mentira ou realidade, se isto que estou ouvindo é mesmo o canto da sereia que a todos enfeitiça com seu timbre sedutor, ou, ao contrário, se tudo não passa de uma melodia riscada pela agulha de alguma vitrola antiga. Oh, meu Deus, que erro dispersa os nossos olhos e fascina nossos ouvidos? Até que haja esclarecido essa incerteza, entreguemo-nos ao encantamento que por ora nos acomete.

Pois esta é uma história de confusões e quiproquós entre dois pares de gêmeos – dois irmãos e dois criados - que transitam de um lado para o outro sem se esbarrarem, promovendo uma infinidade de mal entendidos entre as demais personagens que os veem agir, também eles inconscientes do fato de estarem diante de uma réplica de duas figuras idênticas. Só quem sabe de tudo, adivinhem veneráveis ouvintes, são os espectadores. Isso mesmo. Tudo é endereçado à plateia de Shakespeare para que o espectador tenha a real dimensão desta trama cujo protagonista não se resume a uma figura especialmente destacada, mas responde pelo todo o corpo sinfônico que toca melodias ligeiras e divertidas.

"Extra! Extra! No início era o Verbo e o Verbo era Sir William Shakespeare. Conheceis a mentira e a mentira vos conduzirá a verdade, é o que profetizou o Bardo inglês, este estupendo evangelista das fábulas mais populares e transgressoras que o mundo já viu desfilar pelos precários palcos deste mundão redondo. Sorvei dessa bendita água benta de canudinho, oh respeitável público! A catequese de Shakespeare é o pranto misturado com o riso: o pranto que faz rir, e o riso que faz chorar: nem lá nem cá – uma existência em eterno desequilíbrio sem salvação garantida, ou melhor, uma salvação mais engenhosa porque endereçada à emancipação da rédea dos falsos profetas, dos mitos acéfalos aclamados por asnos igualmente acéfalos. Aos inteligentes e sensíveis: a salvação pela arte, aos crentes e bitolados: um lugar no rebanho dos obedientes e sem espírito: Shakespeare Acima de TO-DOS! E assim ele, o William de Stradford Upon-Avon, inventou a estirpe dos atores e viu que era uma coisa boa, e também perigosa. Perigai-vos, oh veneráveis ouvintes, perigai-vos! Pois tardaram eles, os atores, a se juntarem em trupes mambembes, satíricas, circenses e a sair por aí montando nas praças públicas os seus espetáculos de feira em picadeiros circulares. Extra! Extra! Grupo Galpão de Teatro e Teatro do Ornitorrinco. Louváveis arautos de resistência à fenomenal miséria humana. Fiquemos com este último, com o Ornitorrinco – esse bicho esquisito metade ave metade toupeira, com mamas e cloaca, coisa para lá de não-binária. Ah, o Teatro do Ornitorrinco, Grupo de Teatro fundando no final dos anos 70 e responsável por tanta irreverência em formato de circo, música, dança e teatro. Cacá Rosset, Luiz Roberto Galízia e Maria Alice Vergueiro... Cida Moreira também, e tantos outros depois... Quem os juntou? Dionísio estava de porre? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas os sátiros, com certeza! Porém, como a pólis está entregue aos tiranos e aos homens-de-bem com Deus no coração e enrolados na bandeira nacional – os da família tradicional - todos protegidos pela benção da farda e do porrete, da draconiana censura dos bispos fajutos, eles – os ornitorrincos – para a nossa sorte saem em priápico festim público com pele de bode, chifres e cascos bipartidos, vestem a máscara da persona e dão vazão a toda a sua lascívia em um festim de cabaré! Contra toda o autoritarismo! Contra toda a caretice dos tempos atuais!"

E este é um programa que tenta comprovar que Shakespeare é o grande decifrador da alma humana. Seja na Inglaterra elisabetana ou no Brasil de hoje, ele permanece sempre vivo, bastante próximo a cada um de nós.

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