Depois de um hiato de cinco anos, Beethoven retornou à sonata para piano em agosto de 1814. Era sua 27ª., composta sob o impacto da morte de um de seus grandes mecenas, o conde Karl Lichnowsky. A sonata foi dedicada a Moritz, o irmão de Karl, que morrera em abril, quatro meses antes. E já que era costume que o nobre dedicatário doasse uma quantia de dinheiro ao compositor que lhe dedicava uma obra, Beethoven fez questão de esclarecer por escrito ao conde Moritz que seu gesto era pura amizade e gratidão, e que, portanto, não esperava nenhuma gratificação material.
É uma bela sonata, em seus dois curtos movimentos. Ambos concluem em pianíssimo. Ambos também têm os títulos em alemão – com certeza, um gesto patriótico de Beethoven, num ano em que escreveu obras comemorativas da paz na Europa pós-napoleõnica e Viena acolheu o encontro continental que selou a nova ordem a partir de 1815.
A segunda sonata deste volume da integral Beethoven realizada pelo pianista turco Fazil Say para a Warner Classics é a opus 101. As primeiras ideias foram jogadas no pentagrama em 1813, mas por causa de várias encomendas sua composição acabou sendo retomada apenas em 1816 e concluída no inverno seguinte, em fevereiro de 1817. Novamente, os movimentos têm os títulos, longos, em alemão. E isso índica a intenção de expressar com precisão seu objetivo de criar um novo gênero musical, segundo a pesquisadora Elizabeth Brisson, resultado, diz ela, da “associação de sua imaginação e das potencialidades sonoras dos novos progressos na fabricação de instrumentos” mais parrudos, acrescento eu. Procurou o equivalente alemão à palavra “pianoforte”. Consultou filólogos, e chegou à palavra “Hammerklavier”. A obra tem quatro movimentos que já não correspondem exatamente ao gênero sonata. “Cada um deles”, escreve Brisson, “ oferece uma nova interpretação e a coerência do conjunto se apóia na evocação do tema inicial que reaparece antes do Final. Este, por sua vez, é introduzido por um curto movimento lento” – como na Sonata Waldstein, presente no CD da Semana passada.
A palavra alemã de Beethoven para pianoforte – “Hammerklavier”, teclado de martelos – acabou por colar-se à sua sonata seguinte, opus 106, que ele compôs em 1817 e chamou de “Grande Sonata para teclado de martelos”.
Curiosidade: cada sonata, neste álbum, dobra o tempo da anterior. A no. 27 tem 11 minutos; a 28 tem 20; e a Hammerklavier tem 40 minutos. A grandiosidade corresponde ao tamanho de cada uma delas, degraus de um genial percurso criativo que o leva, na opus 106, a um novo e inédito patamar – o das últimas quatro grandes sonatas, que explodiram em definitivo o edifício convencional da forma sonata. E também foram o motor de aperfeiçoamentos técnicos do piano, dando-lhe maior robustez e amplitude, solicitados por Beethoven ao fabricante Andreas Steicher (sua surdez exigia instrumentos que soassem mais forte, para que pudesse ter uma vaga ideia do que escrevia).
Os títulos dos movimentos retornam ao berço italiano. E Beethoven retorna a Bach e ao contraponto, que jamais deixou de amar. Prova-o a Fuga final. A opus 106, qualifica Brisson, “tem quatro movimentos de escrita muito elaborada, unificados por alguns elementos simples: o intervalo de terça, a oscilação entre si bemol maior e si menor e os campos harmônicos destas duas tonalidades; a extensão extrema dos registros, do mais grave ao mais agudo; a superposição de vários planos sonoros; os trêmolos, que desempenham papel importante; e uma enorme variedade sonoridades novas”.
A opus 106 é um mundo à parte, que o talento de Fazil Say nos revela em sua plenitude.
A cada semana o crítico musical João Marcos Coelho apresenta aos ouvintes da Cultura FM as novidades e lançamentos nacionais e internacionais do universo da música erudita, jazz e música brasileira. CD da Semana vai ao ar de terça a sexta dentro da programação do Estação Cultura e Tarde Cultura.
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