Aos 48 anos, o pianista de jazz Brad Mehldau desfruta de algo que só os grandes músicos podem se dar ao luxo de praticar: a total liberdade criativa. Assim, ele pôde, ao longo de sua formidável carreira, compor um ciclo de lieder e gravá-los com a soprano Renée Fleming, encomenda do Carnegie Hall de 2006 (“Love Sublime”); e um álbum como “Love Songs” ao lado da mezzo-soprano Anne Sofie von Otter em 2010. Em “After Bach”, de dois anos atrás, tocou estritamente e/ou reinventou e improvisou sobre peças de Johann Sebastian.
Mas na seara jazzística ele também vem construindo uma fulgurante trajetória, seja com a série de vários álbuns que exploram “The Art of the Trio”, seja nos registros solo: em 2015, sua gravadora, a Nonesuch, lançou em edição digital 5 horas de solo distribuídas ao longo dos vinte anos anteriores, desde 1995.
Pois nesta pandemia, Mehldau refugiou-se em Amsterdã, Holanda, com a família e os pais. E o novo cotidiano, a inédita situação de isolamento, levou-o a compor uma suíte com doze peças curtas para piano solo. O álbum traz no final três clássicos do “great american songbook” pelos quais ele é particularmente apaixonado e o acompanham desde sempre.
O álbum “Suite April 2020” foi gravado em estúdio na Holanda e chegou às plataformas digitais na segunda quinzena de junho passado. Gesto solidário: mil discos de vinil numerados e assinados pelo pianista estão sendo vendidos nos Estados Unidos exclusivamente nas lojas da Nonesuch, Bandcamp e Discogs ao preço de 100 dólares. Noventa em cada 100 dólares arrecadados serão destinados ao Fundo Emergencial Covid-19 da Jazz Foundation of America e serão encaminhados para ajuda a músicos de jazz em situação de vulnerabilidade. A tiragem comercial de CDs e LPs só acontecerá a partir de setembro próximo (a Warner, que distribui a Nonesuch internacionalmente, avisa que no Brasil só estarão disponíveis edições importadas).
É para uma notável viagem que Mehldau nos convida. De certo modo, sentimo-nos almas gêmeas do artista que transforma em confissões musicais suas dúvidas, angústias e – por que não? – os momentos alegres da vida em isolamento.
Vou dar exemplos desta dicotomia. Todos os títulos, você vai notar, são grafados em minúsculas. Em “keeping distance” (mantenha distância) ele tece um contraponto em que as linhas das mãos esquerda e direita jamais se encontram – resguardam-se umas das outras por uma distância regulamentar de alguns tons. “waiting” também potencializa a sensação de uma espera que não sabemos quando e como vai terminar (assim como, aliás, “uncertainty”).
Mas, de outro lado, há vários momentos bons. “in the kitchen” relemba as refeições em família; “family harmony” traduz em sons o afeto que ele declara renovados voltando a viver tão intimamente, e em 100% dos minutos, com a família. O sentimento agridoce transparece claramente em “remembering before all this”. Mas a última peça é uma encantadora canção de ninar, “lullaby”.
Depois da suíte, Mehldau faz três tributos a canções que o acompanham há muitos anos. E nestas cada palavra é grafada em maiúscula inicial: “Don’t Let It Bring You Down”, de Neil Young, já diz tudo no título “Não deixe isso te derrubar”; “New York State of Mind”, de Billy Joel, chora a distância da cidade que mais ama; e “Look for the Silver Lining”, letra de B.G. DeSylva e música memorável de Jerome Kern, canção composta há 101 anos atrás – acredite --, exalta o lado luminoso da vida.
Durante esta semana os ouvintes da Cultura FM podem curtir quantas vezes quiserem esta gema produzida em plena pandemia pelo pianista Brad Mehldau.
A cada semana o crítico musical João Marcos Coelho apresenta aos ouvintes da Cultura FM as novidades e lançamentos nacionais e internacionais do universo da música erudita, jazz e música brasileira. CD da Semana vai ao ar de terça a sexta dentro da programação do Estação Cultura e Tarde Cultura.
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