Fundação Padre Anchieta

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Dificilmente Cindy Campbell e seu irmão DJ Kool Herc imaginavam que estavam criando um movimento cultural global quando decidiram dar uma festa de volta às aulas em 11 de agosto de 1973, no Bronx, bairro periférico de maioria negra e latina na cidade de Nova York, EUA.

Os quatro elementos do hip hop - disk jockey (DJ), mestre de cerimônia (MC), break dance e grafite - chegaram ao Brasil nos anos 1980, em São Paulo. Em um movimento contrário ao estadunidense, que mantinha as festas no subúrbio, os jovens periféricos paulistanos se deslocavam até o centro, na Rua 24 de maio, região da estação de metrô São Bento, para se reunirem. O local foi escolhido por ter o chão liso, onde os b-boys e as b-girls poderiam dançar com mais facilidade ao som dos DJs e MCs em formação.

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A divulgação desses encontros se dava principalmente pela circulação de zines (revistas curtas de produção independente) produzidas por grafiteiros, transformando a São Bento em um ponto de referência do hip hop brasileiro não apenas na cidade, mas em todo o país. Grandes nomes do movimento se estabeleceram ali, como a b-girl Kika Maida, Rose MC, a rapper Sharylaine, DJ Hum, Thaíde, os b-boys Nelson Triunfo e Rooney Yo-Yo, Nino Brown, e muitos outros.

B-Boys da estação do metrô São Bento, em 1987. Foto: Arquivos UOL.


A popularização do gênero no país se deu somente nos anos 1990, com a ascensão do considerado maior grupo de rap do Brasil até hoje, o Racionais MC's, liderado por Mano Brown e completado por DJ KL Jay, Ice Blue e Edi Rock.

Originários também da estação São Bento, o grupo foi fundado em 1988, mas seu primeiro álbum de estúdio, "Holocausto Urbano" foi lançado em 1991. Com letras reportando a realidade de pretos e pobres em São Paulo e se posicionando contra aparições midiáticas, a banda não apenas se estabeleceu no mercado da música como também abriu as portas para o rap e o hip hop nacional.

O estilo é um dos mais ouvidos no Brasil atualmente, com espaço consolidado em plataformas de streaming, rádios e festivais de música. O exemplo mais recente é o The Town, que além de incluir show do Racionais com a Orquestra Sinfônica de Heliópolis na programação, cedeu a abertura do evento para as gêmeas rappers Tasha & Tracie e destacou gêneros musicais periféricos em todos os dias do festival, com apresentações de MC Hariel, Afrocidade, MC Drika, N.I.N.A. e mais.



Break dance

Apesar do principal expoente do hip hop ser a música, que hoje em dia atingiu o patamar mainstream, sendo apreciado em todas as esferas da sociedade, rodas de break dance ainda são comuns em São Paulo.

Em entrevista ao portal da TV Cultura, o bailarino Sid Souza, de 24 anos, conta como surgiu o projeto Cypher-1000, que promove o encontro de dançarinos urbanos quase todos os domingos na avenida Paulista. "No começo, era mais uma resenha pra gente", diz sobre o começo do grupo, que reunia ele e mais dois amigos. "Vamos em tal lugar dançar hoje? Vamos! E quase todo final de semana a gente marcava de dançar".

Como de costume na cultura hip hop, o projeto cresceu de forma orgânica. "Um dia a gente tava dançando no Parque do Ibirapuera e, do nada, uma mulher chegou e disse 'parabéns, vocês dançam muito' e deu 20 reais pra gente. Essa foi a hora que virou a chave e a gente decidiu ir para a Paulista".

Repetindo o mesmo movimento dos dançarinos de break da década de 1980, a Cypher-1000 ocupou seu lugar na principal avenida da cidade e foi recebendo novos b-boys e b-girls, como a professora Beatriz Pinheiro, de 23 anos. Ela conta que demorou muito para tomar coragem de ir a uma das sessões na Paulista, mas depois que foi a primeira vez, vai sempre a cada 15 dias. "É um projeto que me faz muito bem. Tem essa questão toda de tirar a vergonha de dançar em público".

Já os estudantes de Beatriz não precisam esperar 15 dias para poderem dançar. Além de inglês, ela também leciona hip hop na escola em que trabalha, como matéria eletiva. "No semestre passado, eu estudei bastante com os alunos a base [do break dance] e eles gostaram muito. Eu tinha uma turma de 40 alunos. A gente foi do hip hop old school, do antigão, até chegar nos passinhos que dá pra dançar com trap, que é o que eles mais gostam".

O trap é um gênero musical vertente do rap que surgiu também nos Estados Unidos, nos anos 2010, e atingiu a popularidade quase instantaneamente, tanto lá quanto aqui. Para Beatriz, a preferência dos adolescentes pelo trap é um ponto de atenção para abordar nas suas aulas. "Eu não tenho nada contra o ritmo, mas eu vejo que a letra não traz uma construção social", ela observa. "Então, eu e meus alunos estamos sempre conversando sobre isso. Eles gostam muito de trap, é normal, mas sempre falam 'ah professora, Racionais é clássico'. Eu vejo que eles estão encontrando o equilíbrio, conseguindo analisar os dois".

Grafite

Para Caroline Luz, ou apenas Caluz, grafiteira e arte-educadora de 30 anos, o hip hop como meio de expressão artística é especialmente importante para adolescentes, para estimular o pensamento crítico e romper com o senso comum. "Com adolescente tem uma barreira do que é 'bonito', do que é 'desenhar bem'. Eles se prendem muito nisso, em 'desenhar realista' - uma coisa que, na minha opinião, é meio superestimada, sabe?", explica sobre trabalhar artes visuais com jovens. "Vale muito mais o que você quer expressar, o que você quer externalizar, do que você fazer algo perfeito esteticamente".

Caluz começou a grafitar em 2013, trabalhando na Fábrica de Cultura do Jaçanã. "Quando eu fui trabalhar nesse lugar, que é numa periferia, tinha outros arte-educadores que eram parecidos comigo e que faziam outras coisas, então eu comecei a ver possibilidades. A partir disso que eu me interessei pelo grafite, conheci outros grafiteiros e me inspirei a também colocar minha arte na rua. Tem 10 anos agora."

O grafite apresenta possibilidades também para os estudantes de Caluz. Além da válvula de escape emocional, a prática artística pode ser uma opção de carreira para a juventude periférica. "Eu tenho alguns alunos que viraram tatuadores, por exemplo. Tem um ex-aluno que é designer também. Então, eu acho que, para além de fazer grafite em si, que é muito legal, trabalhar com arte-educação é muito de criar ferramentas de sobrevivência para esses jovens".


É compromisso

"O grafite foi um caminho para eu poder ser eu mesma, para poder me encontrar e para poder me conectar com outras pessoas que tinham ideias parecidas comigo", relata Caluz sobre a importância da arte em sua vida.

Sid também observa as transformações que a dança promoveu em sua vida. "Eu sinto [o break] como algo terapêutico, sabe?", diz. "A dança sempre me deixa no eixo. Sempre que eu danço muito, que eu saio acabado de dor da Paulista, no outro dia eu sei que eu vou pensar 'nossa, valeu a pena'".



Para Beatriz, dançar é sua maneira de enfrentar a timidez. "É muito importante porque me ajudou também a lidar com o medo do que as pessoas vão pensar de mim, principalmente esse ano, que eu estou dançando mais e para as pessoas, não só no meu quarto".

Mais do que apenas impacto individual, todos ressaltam a relevância coletiva do grafite, do break dance e do hip hop como todo, perpetuando o objetivo inicial do movimento, tanto nos EUA quanto no Brasil, de garantir espaço e ferramentas de expressão para todos aqueles que foram negados o direito à cultura.

"Além da dança, a gente leva também um pouquinho da cultura", conta Beatriz sobre sua preocupação em contextualizar a atividade prática com os alunos. "A aula tem uma hora e meia, então nos 10, 15 primeiros minutos a gente fala da história e da importância dos quatro elementos do hip hop e depois a gente dança, para eles entenderem a cultura também".

Caluz é enfática no valor que dá para o movimento. "O hip hop é muito importante para o pertencimento, entendeu? O jovem que está inserido no hip hop, que faz parte desse grupo, tem outras pessoas que pensam igual a ele, que vão trocar com ele, que vão fortalecer em momentos que ele tiver com alguma questão".

O equilíbrio e a união de razão e emoção é o que faz não só pessoas periféricas, mas minorias no geral, se atraírem e se identificarem com o hip hop. "Ele ajuda a externalizar as coisas pelas quais a gente passa, ajuda pessoas de periferia a terem ferramentas para resistir e denunciar, para conscientização política. Eu acho que é o mais importante", completa Caluz.