"Sou uma sobrevivente do feminicídio", relata assistente social que hoje ajuda mulheres violentadas
Neste Dia Internacional de Luta Contra a Violência à Mulher, Lucy Lima, que viveu todos os tipos de agressões, contou sua história ao site da TV Cultura
25/11/2021 12h20
A baiana Lucy Lima, de 45 anos, teve um árduo caminho para chegar até aqui viva e se tornar assistente social e palestrante. Nesta quinta-feira (25) se comemora internacionalmente o dia da luta contra a violência à mulher e o site da TV Cultura conversou com essa sobrevivente do feminicídio para orientar e ajudar as mulheres que vivem um relacionamento abusivo.
Lucinete Aparecida Santiago Lima nasceu no município de Itaeté, na Bahia, e se tornou a grande Lucy Lima após viver uma vida inteira de abusos.
Ela se mudou para Campinas, em São Paulo, quando criança com seus pais, e cresceu num ambiente abusivo. Sua mãe, dona Rosália Maria Santiago, já era vítima de violência doméstica. O pai era alcoólatra e trabalhava como chefe de cozinha na cidade. “Cresci em uma atmosfera tóxica e no meio do ciclo da violência doméstica achando que o que eu vivia era natural. Tive mais quatro irmãos e todos nós sofremos agressões praticadas pelo nosso genitor”.
Aos 18 anos, Lucy foi morar com o pai da minha primeira filha, um relacionamento que durou 8 anos. Depois se mudou para a cidade de Presidente Venceslau, onde se casou com o pai dos seus quatro filhos - e futuro abusador.
“Primeiro ano de casamento foi um dos melhores que já vivi. Após o nascimento do nosso filho veio o primeiro tapa no rosto e até hoje me pergunto qual foi o motivo. Após o primeiro tapa, foram 10 anos de violência doméstica e o ciclo só piorou”.
Ela conta que começou com a violência psicológica. “Ele dizia para mim que eu era feia, que minhas pernas eram feias, que eu deveria cortá-las e que jamais eu deveria olhar no espelho porque o espelho poderia quebrar. Eu acreditava nas palavras dele, me sentindo constrangida”.
Manipulação, isolamento social, humilhações, chantagens, todas essas coisas causaram grande prejuízo psicológico à Lucy, que perdeu completamente sua autodeterminação. Até que veio a violência física.
“Ele me dava tapas, empurrões, chutes. Tentava me enforcar, colocava faca no meu pescoço. Me ameaçava com o revólver, beliscava minhas partes íntimas, me dava mordidas. Tentava me queimar, colocava o botão do bujão de gás aberto. Ele já me arrastou por alguns quilômetros pelos cabelos no sítio em que morávamos, quando eu tinha cabelo comprido”.
Lucy viveu também a violência moral. “Ele me difamava com injúrias, ofendia a minha honra, me chamava de vaca, prostituta, vagabunda. Ele imputava falsamente fatos criminosos, como por exemplo, dizia que eu tinha roubado ele ou que eu era amante de homens fazendo a minha honra ficar completamente desmoralizada”.
Com esse tratamento, o agressor a isolou completamente da vida social. Ela conta que tinha muita vergonha de sair na rua e de encarar as pessoas, porque ele gritava alto para a vizinhança. Os vizinhos, por sua vez, alguns tinham medo de se aproximar para ajudar, outros tinham pena e alguns acreditavam no que ele dizia.
Não parou por aí, veio a violência patrimonial também. Ele retinha os instrumentos de trabalho e documentos pessoais de Lucy. Ela não tinha posse do próprio dinheiro. “Ele, inclusive, vendeu uma casa nossa e eu não vi nem o valor, o quanto ele pegou pelo imóvel’.
Por fim, veio a violência sexual, onde foi obrigada a fazer sexo com ele quando não queria. Lucy conta um episódio em que foi estuprada quando já tinha pedido o divórcio e não estava mais morando com o agressor.
“Ele pulou o muro da casa onde eu morava, entrou por uma janela e me usou sexualmente. Me impediu de usar contraceptivo, dizendo que eu era mulher dele, que eu tinha que satisfazer os desejos dele e dessa violência sexual, eu acabei engravidando. Ele só veio para o ato e depois desapareceu”.
Desse estupro, Lucy ficou grávida do seu filho caçula. Ela não aceitou a gestação de início, até os seis meses ela conta que “não conseguia amar aquela barriga”.
Foi aí que a tentativa de suicídio veio. “Eu estava caminhando no corredor da casa em que eu morava, os meus outros três filhos estavam dormindo no quarto do fundo, numa cama de casal. Eu já tinha arquitetado tudo: eu estava com uma garrafa de álcool na mão, o fósforo na outra, caminhando para deitar e tacar fogo no meu corpo e abraçar as crianças, e eles morrerem juntos comigo”.
Até que, antes de consumar o ato, Lucy caiu em si e teve um choque de realidade. Ela entrou em casa, foi até o banheiro e se olhou no espelho depois de anos, devido a violência psicológica.
“Eu saí daquele banheiro decidida a mudar a minha história e a história dos meus filhos. Naquele dia Lucy Lima nasceu, porque meu nome de batismo é Lucinete Aparecida Santiago Lima, mas foram as palavras daquela mulher em frente ao espelho que me trouxeram de volta a minha realidade”.
Naquele mesmo dia, Lucy recebeu a notícia de que tinha sido aprovada num concurso público que havia prestado quando ainda estava casada. Ela conseguiu o emprego e trabalhou até tirar a licença maternidade.
O filho fruto do estupro nasceu, Benjamin, e quando ele tinha 1 ano e meio, Lucy foi buscar uma faculdade. “Eu resolvi fazer justamente serviço social por conta de toda violência que eu havia sofrido. O TCC foi voltado para a violência doméstica, onde eu pude estudar um pouquinho sobre o CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social]”.
Hoje, Lucy Lima é palestrante em tempo integral, trabalha fortalecendo a mulher, fazendo com que ela se valorize e tenha sua autoestima elevada, e que ela apresente condições de trabalhar para sua realização pessoal, de assumir novas atividades no relacionamento amoroso, de oferecer aos filhos os cuidados e atenção adequadas, ensinando a eles valores necessários para uma vida sem violência.
“O que aconteceu comigo foi um milagre. Eu sou uma sobrevivente do feminicidio, porque por várias vezes ele tentou me matar, mas eu também cresci, amadureci, me fortaleci”, desabafa. “Hoje me sinto curada, fortalecida e capaz de ajudar outras mulheres”, conclui a assistente social.
É possível acompanhar o trabalho de Lucy Lima através do Instagram, onde ela dá voz às mulheres vítimas de violência.
Como denunciar violência contra a mulher?
A lista com serviços de proteção e atendimento às mulheres em situação de Violência Doméstica e Familiar no Estado de São Paulo podem ser acessadas no site da Defensoria Pública, onde as vítimas podem solicitar medidas protetivas de urgência em razão da violência doméstica sofrida, independentemente da existência do boletim de ocorrência. É possível realizar o atendimento também pelo telefone 0800-7734340 (apenas para as cidades de São Paulo, Guarulhos e Campinas, entre 7h e 19h de segunda à sexta-feira).
Aplicativo SOS Mulher: permite que mulheres que tenham medidas protetivas concedidas pela justiça acionem o serviço 190 em caso de risco.
Central de Atendimento à Mulher - DISQUE 180: programa nacional que funciona 24hs e recebe denúncias de assédio e violência contra as mulheres, encaminhando essas denúncias aos órgãos competentes. Também realiza acolhimento, orientações e encaminhamentos para os serviços da rede de atendimento em todo o território nacional.
Emergência policial - DISQUE 190: número de telefone da Polícia Militar disponível de forma gratuita em todo o território nacional. Deve ser acionado em casos de necessidade imediata ou socorro rápido.
Casa da Mulher Brasileira (CMB): Espaço de referência estadual/nacional integrado de atendimento às mulheres em situação de violência que reúne diferentes serviços e proteção (obs.: esse equipamento não substitui o acompanhamento especializado nos serviços regionais).
Endereço: Rua Vieira Ravasco, 26 – Cambuci/Centro – São Paulo/SP.
Telefone: (11) 3275-8000 (atendimento em Libras, na Central de Intermediação, para atender mulheres surdas).
Horário de funcionamento: 24 horas.
Serviços oferecidos:
1ª Delegacia de Defesa da Mulher: segue funcionando 24 horas;
Acolhimento e atendimento por equipe multidisciplinar (Psicologia e Serviço Social): segue funcionando 24 horas;
Alojamento de Acolhimento Provisório: segue funcionando 24 horas;
Atendimento jurídico (Defensoria Pública, Ministério Público e Tribunal de Justiça): neste momento só por plantão remoto, acionado pelas profissionais da Casa da Mulher Brasileira.
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