Como que o South By Southwest, evento que começou há quase 40 anos como um festival de música, se tornou presença obrigatória para executivos das principais marcas brasileiras? De lá pra cá, o SXSW se posicionou como referência sobre inovação, futuro e humanidades. A edição de 2022 teve linhas bem diversas como: 2050, Publicidade e Experiências de Marca, Mudanças Climáticas, Design, Cultura, Filme e TV, Games, Futuro da Música, Startups, Tecnologia e Transportes. Com tantas abordagens, é humanamente impossível acompanhar o evento todo. Aí que fica o pulo do gato. Quando cada um faz sua própria curadoria, o evento existe não apenas nos conteúdos transmitidos pelas palestras, mas principalmente em rodas de conversa entre desconhecidos que formam um amálgama de interessados em debater o que está por vir. Eu, como produtora (e membro vitalício do clube dos curiosos), posso contar sobre minhas experiências.
1 - Tecnológicas: Web 3.0, NFTs e Metaverso
Esses três conceitos permearam a maior parte das palestras. Em definição livre, a Web 3.0 é a próxima etapa da internet, capaz de unir inteligência artificial com machine learning em um sistema descentralizado de relações criptografadas que, além de mais seguras, dispensam a necessidade de organizações intermediárias. É nesse ambiente que os NFTs (non-fungible tokens) são comercializados e, por tratar-se de propriedades que não podem ser copiadas, podem chegar a valores tão altos quanto a especulação pode alcançar (um iate digital foi vendido por 650 mil dólares para ser usado em um jogo que sequer foi lançado). Para alguns gurus do marketing, em breve nem lembraremos da Web atual, assim como é difícil recordar os tempos que a internet não tinha e-commerce. Porém nem todos são entusiastas. O Prof Scott Galloway, famoso pelas suas previsões, acredita que esse sistema vai favorecer ainda mais a concentração de recursos já que hoje 80% do mercado de NFTs se resume a 9% das contas.
E o metaverso? Alguém aí conseguiu explicar? Vai pegar ou será apenas mais uma versão do Second Life? Na minha opinião, o metaverso continua representando o conjunto de espaços de realidade estendida (realidade virtual e aumentada), que foi recentemente batizado pelo Facebook/Meta, em uma simples manobra de marketing para se posicionar com a propriedade de algo que não lhe pertence (que novidade). É nesse espaço que, vivendo em Los Angeles desde 2017, usei meu Oculus para abraçar amigos durante o isolamento da pandemia e conheci várias pessoas novas, como se estivessem na minha sala. Mas na falta de uma definição, uma coisa é certa: esse sistema ainda caminha para a interoperabilidade, ou seja, a capacidade de seu “avatar” transitar em diversos “metaversos” que estão sendo construídos. É como na época que se construíram os portais de internet e, em seguida, os emails permitiram que um “uol” conversasse com o “hotmail”.
Hoje o game Sandbox já é capaz de explorar o metaverso para além do jogo, com encontros sociais e noitadas, a partir da construção de mundos e avatares. Um dos NFTs circulantes é um avatar do Snoop Dog vestido de Gucci que poderá ser usado apenas por seu proprietário para toda a eternidade. A empresa já aceita NFTs de outros metaversos e aposta na criação da base de fãs - tanto que promoveu uma festa com Paris Hilton como DJ em Austin.
Mas quem são os trabalhadores que estão desenhando esses espaços? Para Alex Smeele, fundador do projeto de NFTs FLUF, da Nova Zelândia, enquanto homens brancos endinheirados estiverem à frente disso, a tendência será reproduzir padrões. Para ele, a grande oportunidade do metaverso é a possibilidade do uso da criatividade por todos os indivíduos, caso contrário toda essa onde servirá apenas para “trazer sangue novo para o cassino”.
Opiniões à parte, é inegável que, qualquer que seja o apelido, a presença no mundo virtual vai trazer novas formas de se comunicar.
2 - Finalmente, a vez responsabilidade: Big Techs e ESG
Mas a pergunta que permeou todas as falas foi: e como chegamos até aqui? Nesse sentido, ESG tomou o centro de quase todos os debates. Para Tristan Harris, um dos principais personagens do aclamado documentário “O Dilema das Redes”, a tecnologia deve sair do lugar de neutralidade para apoiar a justiça. Maria Ressa, jornalista filipina Nobel da Paz, concorda que todas as empresas, principalmente as BigTechs não podem mais ser imparciais. Frances Haugen, que foi a juri denunciar o Facebook no ano passado, comprovando parcialidade em diversas decisões, foi enfática: "Zuckerberg não apoia liberdade de expressão porque o foco dele é manter a plataforma lucrativa”. Ela acredita que os grupos do Facebook foram decisivos para criar ambientes de reprodução de discursos e muitas pessoas foram dragadas para esses espaços.
O brasileiro Konrad Dantas (o Kondzilla) fez uma palestra emocionante destacando a necessidade de trazer não apenas a inovação para a favela, mas os moradores da favela para gerar inovação. Ao final, convidou Edu Lyra ao palco que revelou que lançou o desafio a Elon Musk para entrarem de Tesla na favela - e prometeu levar junto a cantora Anitta. A também brasileira AMBEV anunciou em primeira mão que está desenvolvendo produtos que ajudam a reduzir ou controlar o álcool no sangue. Para a empresa, chegou a hora de mudar os hábitos dos consumidores, pois se os produtos não forem utilizados com responsabilidade, a tendência será abandoná-los.
E toda a responsabilidade não será suficiente na era da biohacking. Para o cientista Josiah Zayner, fazer alterações genéticas para curar doenças será tão corriqueiro quanto fazer uma tatuagem. Polêmico, ele pretende oferecer kits de CRISPR para qualquer pessoa fazer engenharia genética em casa, tirando a ciência da exclusividade dos laboratórios e dos artigos acadêmicos. A futurista Amy Webb, que há 15 anos lança relatórios anuais de tendências no SXSW, reforçou que já existem crianças vivas que tiveram seus códigos genéticos editados e que pessoas já podem ser programadas da mesma forma que computadores. Mas como ela costuma colocar, o futuro depende das decisões que vamos tomar agora, ou seja, se essas possibilidades vão colaborar para mitigarmos doenças ou apenas para produzirmos frangos gigantes. Para ela, a responsabilidade virá com a capacidade de re-perceber o mundo, calibrando nosso olhar para entender melhor o papel das empresas e das pessoas para o que será construído.
3 - Humana, presencial
Sem dúvida, o destaque do SXSW esse ano foi o encontro presencial em si. Para muitos participantes foi a primeira oportunidade de se reunir ao vivo, exibir seu rosto, confraternizar. Pryia Parker, mediadora de conflitos e destaque do evento online no ano passado, voltou esse ano para celebrar o encontro físico e deixar claro que daqui pra frente, as pessoas só sairão de casa para assuntos que tenham relação emocional. Para ela, não faz sentido reunir pessoas sem um propósito muito bem definido. E que pessoas são essas? A Dra. Allison Sekuler, cientista-chefe do Center for Aging and Brain Health Innovation revelou que já nasceu a geração que viverá mais de 150 anos, porém com baixíssima qualidade após os 80. Doenças mentais como Alzheimer são profundamente agravadas pela solidão e, nesse contexto, ferramentas de realidade virtual podem colaborar para estender o tempo de saúde. Primeiro, porque para o cérebro, a sensação de presença em um ambiente virtual é muito mais potente que uma conversa por telas e isso ajuda o cérebro a recuperar memórias. Segundo, porque em realidade virtual um idoso pode “se transformar” em sua versão mais jovem, ajudando a recuperar padrões mais dinâmicos. Terceiro, porque quando um idoso interage em ambiente virtual com gerações mais jovens,isso colabora para mitigar os preconceitos e incluir os mais velhos na vida social, criando um círculo virtuoso de participação. E mais: essas ferramentas podem ajudar a prevenir doenças, identificando padrões de estímulos cerebrais antes que sintomas físicos apareçam, combinados com “wearables” que medem ritmo cardíaco, temperatura do corpo e respiração. Foi apostando nisso que a MyndVR está lançando um óculos para o público da terceira idade. Nessa linha de avanços “do bem”, tiveram games que ajudam com saúde mental, World Food Program da ONU que usa tecnologias para diminuir a fome no mundo e leitura de íris para identificação de refugiados para atendimento por organizações internacionais.
Como uma otimista convicta, na minha opinião quem melhor melhor ilustrou as ideias desse ano foi o extraordinário Henry Jenkins, um dos primeiros a usar o termo “transmídia” há mais de uma década. Ele está lançando o projeto “The Civic Imagination” com a premissa simples de perceber lacunas entre comunidades diversas. Ele divide em passos simples:
Imagine um mundo melhor. Imagine o processo de mudança. Imagine que nós seremos os agentes dessas mudanças. Imagine que podemos nos conectar em comunidades maiores. Tente solidariedade com pessoas diferentes e consigo mesmo. Traga uma dimensão imaginária para o mundo real. Faça um mundo melhor.
Fernanda Martins é produtora de realidade virtual e conselheira da associacao brasileira de realidade estendida
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