Com tênis da Adidas, bermuda, uma polo e um boné brancos da Lacoste, um adolescente afirma: "Tem que estar sempre elegante, atraente, porque assim, se eu for olhar para a cara de cada um [aqui] não é tão bonita. Se você já é feio e anda jogado, aí é triste”. Essa frase descreve como o desenvolvimento da identidade e autoestima dos jovens de favela pode ser impactada pelo consumo de itens de grandes marcas, o qual torna-se um elemento crucial para a construção do empoderamento da juventude periférica.
O consumo é um meio essencial para a manutenção do capitalismo, sendo impulsionado e incentivado, por meio de estratégias financeiras (como o crédito) e de marketing, para a sobrevivência de toda cadeia do sistema capitalista. Para Paula Silva, cientista social pela Universidade de São Paulo, “hoje somos mais necessários socialmente como consumidores do que produtores. É para isso que a sociedade apela por meio da publicidade para chamar nossa atenção para o consumo”.
Jean Baudrillard, sociólogo e filósofo francês, afirma em seu seu livro 'A Sociedade de Consumo' que os indivíduos utilizam o consumo como forma de comunicação, isto é, a partir do consumo que os seres humanos afirmam a sua personalidade e identidade. Assim, pode-se apontar que o jovem da periferia, inserido nessa lógica capitalista, também irá utilizar o consumo – de roupas ou itens de grandes marcas, por exemplo – para construir a sua individualidade.
“Pela psicanálise, o jovem está mais preocupado com a questão do reconhecimento. Ele quer ver, ele quer ser visto, ele quer fazer parte. É importante para construção de quem ele é. Todos nós buscamos reconhecimento e todos nós buscamos reconhecimento por meio do consumo, mas os jovens são os mais suscetíveis pela busca do reconhecimento para a construção da personalidade (...) Ninguém quer ser invisível nesse mundo”, afirma Silva.
“É importante apontar que consumo está ligado à acesso, o consumo abre portas. Para o jovem de periferia o consumo de marca, o consumo de roupa, de tênis é para ele ter acesso. A ideia de andar mal vestido, não colocar uma marca [ou] não colocar um tênis, faz parecer que você não é visto em outros lugares”, declara Lana Coelho, economista da Nath Finanças, empresa de orientação financeira dirigida pela influenciadora Nathália Rodrigues (ou Nath Finanças, como é conhecida).
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Ainda de acordo com Lana, o consumo é importante para o empoderamento do jovem favelado, pois faz com que ele tenha a possibilidade de estar em outros espaços sociais e ser visto de uma forma menos perversa pela sociedade. “O consumo abre portas. O jovem pensa: ‘eu vou andar bem vestido porque assim eu vou para o shopping e o segurança não vai me seguir'. ‘Eu vou andar bem vestido porque assim a pessoa que eu gosto vai olhar para mim’”, afirma.
Impactos na saúde financeira
Apesar do consumo ser considerado uma ferramenta para desenvolver o empoderamento do jovem periférico, o excesso dele pode trazer sérios problemas para a construção da saúde financeira dessa população, uma vez que para sustentar a aquisição de roupas de grandes marcas, por exemplo, é necessário um grande investimento, o que, em virtude da desigualdade social no Brasil, não é uma realidade para muitas famílias das periferias.
"No natal e ano novo eu gasto uns R$ 1.300 com roupa", "se eu tivesse dinheiro era todo dia um kit novo, mas a renda não ajuda", disseram dois estudantes da Escola Estadual Pedro Alexandrino, localizada no extremo norte de São Paulo.
Nesse contexto, muitos jovens utilizam o crédito bancário como uma alternativa financeira para conseguirem comprar itens de marcas conceituadas, o que pode ser uma medida arriscada, tendo em vista o aumento da possibilidade do endividamento dessa população.
Segundo a Peic (Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor), divulgada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 77,9% das famílias brasileiras declararam estar endividadas em 2022. O cartão de crédito é a modalidade de dívida mais citada, representando 86,6% das respostas. Além disso, jovens com menos de 35 anos representaram na média 78,1% do total de consumidores pesquisados.
“É legítimo você, no primeiro salário, comprar um tênis de R$ 500 que você nunca teve acesso. Você não trabalha oito, nove, dez horas por dia para guardar e viver a vida só no futuro, você tem que viver o presente também. Se antes você queria um tênis de R$ 500 e hoje você pode, você não precisa se culpar por isso. O lance da educação financeira é que você pode comprar o tênis desse valor, sem deixar de pagar a sua luz, por exemplo. Não é criminalizar o consumo, é utilizar o consumo de maneira inteligente”, explicou Lana Coelho.
Consumismo X Pirataria
Já que itens originais de grandes marcas apresentam um preço mais elevado, parte dos jovens de periferia recorrem à pirataria. Ao serem questionados sobre o tema, os adolescentes entrevistados para esta reportagem dizem que o Brás, região de São Paulo conhecida pelo comércio de produtos mais baratos ou falsificados, é uma alternativa para manter estilo e estética que eles procuram ter.
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“A pirataria ajuda a gente, porque uma dessa aqui [camisa polo da marca Lacoste] no Brás é R$ 35”, afirma o estudante Daniel Assis, de 16 anos. Para comparação, a mesma camisa custa, em média, R$ 300 no site da Lacoste.
“O consumo faz parte do sistema econômico, é um celular novo a cada ano, é um tênis a cada mês. É algo incentivado. Aí entra a pirataria, porque, se tem um tênis de R$ 500 que todo mundo está utilizando e outro de R$ 100 que é uma réplica, eu vou comprar o de R$ 100, porque eu quero ser aceito”, afirma a economista Luna Coelho sobre o assunto.
No artigo 'Os sentidos do real e do falso: o consumo popular em perspectiva etnográfica', as pesquisadoras Lucia Scalco e Rosana Pinheiro-Machado explicam: “Em muitas situações, o importante é possuir/exibir a marca, mesmo que falsificada. A cópia não deslegitima o uso individual. O importante é compartilhar um símbolo, seja ele impresso por meio de um meio legítimo pelas políticas de propriedade intelectual ou não."
Segundo dados da Associação Brasileira de Combate à Falsificação, o Brasil teve um prejuízo de R$ 345 bilhões em 2022 por causa da pirataria, sendo o setor de vestuário o quarto mais impactado, pois perdeu cerca de R$ 18 bilhões.
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