Quando o mundo foi assolado pela gripe influenza no início do século passado, não havia a tecnologia disponível hoje para rapidamente fazer um estudo genético dos vírus que estão causando as mortes de milhares de pessoas — algo muito diferente do que ocorreu com o coronavírus causador da pandemia atual.
Mas cientistas estão se dedicando a montar uma espécie de "túnel do tempo" para entender, com as ferramentas atuais, como se comportou o vírus que causou pandemia de influenza A iniciada em 1918 — que ficou popularmente conhecida, erroneamente, como gripe espanhola. Saber deste passado pode nos preparar para futuras pandemias, já que elas são previstas pelos cientistas.
Nesta terça-feira (10/5), novos resultados desse esforço foram publicados na revista científica Nature Communications. Trabalhando com o material genético de restos mortais de pessoas que perderam a vida em 1918, os pesquisadores apontam que o subtipo H1N1 responsável atualmente por gripes sazonais pode ser um descendente direto da cepa do vírus tipo influenza A que causou a pandemia do século passado.
Essa possibilidade se contrapõe a outra hipótese, a de que o H1N1 é resultado de um processo de rearranjo, ou seja, quando há uma troca de segmentos genéticos vindos de subtipos de vírus ao longo do tempo.
A possibilidade de uma ligação direta entre a cepa de 1918 e o subtipo H1N1 que circula hoje foi levantada graças a um método chamado de relógio molecular, que permite estimar o número de alterações genéticas que se acumulam ao longo do tempo — e que eventualmente levam à divisão de linhagens ou espécies, por exemplo.
Os autores do estudo publicado nesta terça-feira, liderados por pesquisadores do Instituto Robert Koch, na Alemanha, afirmam que apenas na década de 1930 foi confirmado que a pandemia de 1918 teve como origem um vírus, e que pesquisas recentes já haviam mostrado que ela foi causada por um vírus tipo influenza A e de subtipo H1N1. O que a equipe traz de novo é a demonstração das semelhanças entre segmentos do material genético daquele tempo com a influenza sazonal de hoje.
Diferenças sobre variantes
É importante lembrar que o H1N1 causou uma pandemia também em 2009. Já a pandemia atual é causada por uma família de vírus diferente da influenza (Orthomyxoviridae), a Coronaviridae.
Por outro lado, os autores dizem que "todos resultados relatados (no estudo) permanecem preliminares", uma vez que eles trabalharam com um pequeno número de amostras. São pouquíssimos os restos mortais daquela época conservados para estudo. Alguns, principalmente dos Estados Unidos, já haviam sido parcial ou totalmente sequenciados geneticamente.
No estudo publicado na Nature Communications, os autores trazem informações sobre mais três corpos, cujos tecidos pulmonares revelaram infecção pela influenza A. Essas amostras fazem parte de uma coleção histopatológica do Museu de História Médica de Berlim, na Alemanha.
Em uma entrevista coletiva virtual, o pesquisador Sébastien Calvignac-Spencer afirmou que as poucas amostras de restos mortais de pessoas que morreram na pandemia de 1918 são difíceis de trabalhar, devido aos desafios para a conservação do material, entre outros fatores. Por isso, ao começar a estudar as amostras em Berlim, Calvignac-Spencer disse que não estava muito "esperançoso".
"Há cinco anos, a primeira coisa que fiz foi bater à porta da coleção de patologia mais próxima, em Berlim. Eu realmente só queria ter uma primeira visão técnica", contou. "Então, eu olhei junto com a equipe (do museu) os tecidos pulmonares que eles tinham guardados, e tivemos muita sorte porque eles tinham um punhado de amostras da gripe de 1918 muito muito raras."
"Queremos encontrar mais amostras e reconstruir mais genomas", acrescentou Calvignac-Spencer, cujo laboratório estuda a evolução dos vírus respiratórios nos últimos dois séculos.
De acordo com a equipe, não há amostras dos anos imediatamente anteriores ou posteriores à pandemia do século passado. Portanto, é difícil precisar como a virulência do H1N1 foi decaindo, até passar de uma pandemia para uma influenza sazonal. Por outro lado, os cientistas conseguiram detectar sinais de que houve transmissão local combinada com uma dispersão do vírus entre os continentes.
Na entrevista, Calvignac-Spencer foi cauteloso ao comparar a pandemia de 1918 com a de agora, iniciada em 2020: "São duas pandemias muito diferentes. São vírus diferentes, e também são outras as condições para o vírus se espalhar: as populações não são organizadas da mesma forma, nem conectadas da mesma maneira."
"Naquela pandemia (de 1918), houve muitas ondas (de casos de infecção), exatamente como vemos agora", disse. "Mas ao contrário do que vemos na pandemia de covid, em que diferentes ondas normalmente estão associadas a novas variantes, durante a pandemia de 1918 provavelmente não foi assim. Os poucos dados que temos não sugerem que houve uma substituição (de diferentes variantes)."
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