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O pesquisador e estudioso Gutemberg Cruz está lançando "Grande Dicionário do Quadrinho Brasileiro" (editora Noir), uma obra que cataloga personagens das HQs nacionais distribuídos em 1.035 verbetes. Ou seja, uma ótima oportunidade para conversar o tema, que tanto me interessa, com alguém que passou décadas debruçado sobre ele.

Na entrevista, Gutemberg Cruz conta sobre seu início como estudioso, com o fanzine "Na Era dos Quadrinhos", explica um pouco sobre seu novo livro, comenta as características que marcam as HQs nacionais e ainda apresenta dicas daria para quem quer estudar quadrinhos.

Por favor, conte um pouco sobre o sr. Onde nasceu e cresceu, em que trabalha... Como o sr. começou a ler quadrinhos? Que obras, personagens ou autores te interessavam?

Nasci em Salvador, em abril de 1954, em um bairro pobre da cidade, Pero Vaz. Lá, aos 13 anos de idade fundei, com os amigos, o Clube da Editora Juvenil para estudar, analisar e criar quadrinhos brasileiros. Na época lançamos o fanzine “Na Era dos Quadrinhos”, que teve como leitor o estudioso Umberto Eco. Isso está registrado em um de seus livros. Mais tarde o clube mudou o nome para Centro de Pesquisa de Comunicação de Massa. Realizamos exposições em diversos locais, com palestra para mostrar o valor dos quadrinhos, tidos na época como subcultura e coisa de criança. Até hoje me lembro da primeira vez que saí do distante bairro do Pero Vaz para conhecer, no bairro de Nazaré, a Biblioteca Infantil Monteiro Lobato. Naquela época não tinha recursos financeiros para adquirir livros, e nas minhas escolas (primário e ginásio) não havia biblioteca. Que felicidade ao ver aquele casarão belíssimo cheio de livros. Fiquei muito emocionado. Aquilo parecia até que tinha ido a Disneylândia, o paraíso das crianças endinheiradas da época. Sim, a Biblioteca Infantil Monteiro Lobato foi minha Disneylândia. Eu ficava horas passeando com os olhos aqueles livros encantadores. Sonhava em morar perto dali, era um desejo fortíssimo. E não é que décadas depois, já me esquecendo do fato, fui morar e ainda moro ali pertinho.

Há quanto tempo o sr. pesquisa quadrinhos? Quando e como começou?

Desde os anos 60. Tudo que lia, anotava num caderno, pois não existia celular, computador... Na primeira metade da década de 70, qualquer aficionado por quadrinhos sabia da existência do fanzine baiano “Na Era dos Quadrinhos”. Apesar de ter “agitado” as seções de cartas das principais revistas de quadrinhos nos cinco anos em que circulou, “Na Era dos Quadrinhos” “desapareceu” da história dos zines brasileiros – certamente pela “distância” da Bahia em relação aos principais polos editores.

Outra atividade do Centro de Pesquisa na Bahia foi realizar exposições. Em 1970 montamos a I Exposição de HQ do Norte e Nordeste, no salão nobre do ICEIA. O tema abordado: A importância dos quadrinhos. No debate, o professor Adroaldo Ribeiro Costa (muito conhecido na Bahia) foi agraciado com o título de presidente de honra da associação. Em 1971, na Biblioteca Central do Estado, o tema da mostra foi Os Quadrinhos no Mundo. No ano seguinte, Os Quadrinhos no Brasil, também na Biblioteca Central. Em 1976, no Instituto Cultural Brasil Alemanha (ICBA), Quadrinhos Baianos. A Associação de Quadrinhos da Bahia realizou ainda centenas de palestras, aulas e cursos nas escolas, bibliotecas e espaço cultural em Salvador e em diversas cidades do interior da Bahia, além de levar as exposições para outros municípios e divulgar melhor o fanzine. O estudioso italiano Umberto Eco também recebia o fanzine baiano e comentou em um de seus livros.

Foi com o “Na Era!” que surgiram as primeiras manifestações conscientes no sentido de se construir HQ autenticamente nacional – e popular. O quadrinho baiano tomou fôlego com o surgimento do tabloide “A Coisa” no jornal Tribuna da Bahia. A Coisa foi um seguimento natural do Na Era. Em pouco tempo o suplemento semanal revelou novos cartunistas e desenhistas de quadrinhos. Surgiu em agosto de 1975, enfrentando diversos problemas com a censura e, por motivos internos do jornal, A Coisa foi reduzida a uma página, até sumir em março de 1976. Saíram 32 números com muito humor, quadrinhos e informações. Durou oito meses, tempo suficiente para a reunião dos cartunistas e discussão de novas ideias e projetos. Em junho de 1976 surgiu o nanico “Coisa Nostra” com texto, cartuns e quadrinhos. O importante, – diziam os editores – ‘é que o riso não fique na boca. Ele tem de dar uma chegadinha na consciência’. Coisa Nostra durou apenas quatro números.

O sr. está lançando um dicionário com mais de mil verbetes sobre quadrinhos brasileiros. Como essa pesquisa começou e quanto tempo durou?

Não foi muito difícil, pois já tinha uma grande quantidade de informações. Com o incentivo de Gonçalo Junior, por meio da [editora] Noir, foi um grande impulso para terminar a pesquisa. Em minha jornada, como pesquisador das artes gráficas, sempre autopubliquei meus trabalhos e produzi minhas obras sem um feedback editorial envolvido. Isso mudou nesta nova publicação, tendo à frente o amigo Gonçalo Junior da Editora Noir que fez uma edição brilhante. Já publiquei os livros “O Traço dos Mestres” e “Feras do Humor Baiano”, premiados no HQMIX, e outros livros sobre a cultura baiana.

Ainda sobre a pesquisa: o que foi mais difícil descobrir? E o que estava mais à mão?

Descobrir um personagem fantástico chamado OSCAR - Pode ser considerado o primeiro super-herói criado no Brasil, pelo cearense Gustavo Barroso (1888-1959), na época um garoto de 16 anos, e mais tarde, advogado, professor, museólogo, político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista brasileiro. Oscar é o príncipe que tem seu reino invadido e tomado por um usurpador. Ele adquire um anel mágico que tem talhada a bandeira brasileira, que lhe dá superpoder. O anel concedia a Oscar poderes especiais. E tinha um uniforme especial. Suas histórias foram publicadas na revista Tico-Tico em 1908. Gustavo Barroso criou o primeiro super-herói do mundo, Oscar, um príncipe que adquire superpoderes através de um anel, inclusive voo, e todas essas características foram usadas nos quadrinhos de super-heróis norte-americanos que foram, em sua maioria, escritos e desenhados por judeus. O importante no dicionário é que a pesquisa não ficou centralizada nas publicações do Rio e São Paulo, atravessou o Nordeste, o Sul do país, o Norte...

Entre as centenas de personagens catalogados, o sr. conseguiria destacar dois ou três casos curiosos?

Péricles, o criador do mais famoso e popular personagem do cartum brasileiro, o sádico, maldoso e malicioso Amigo da Onça. Seu mau-caráter era amado. O sucesso do Onça (quatro décadas!) tem tudo a ver com o jeitinho brasileiro. Por essa razão, exerceu a autocrítica a um Brasil que tem tudo para dar certo, mas que sempre é invadido por Amigos da Onça que se deleitam em precatórios ou invadem a alma de políticos que se perdem em autoritarismo.

O desenhista da fome Edgar Vasques e seu desempregado Rango. Tem a escatologia de Marcatti, a criatividade de Laerte, o desenho fluído de Mozart Couto, o traço caligráfico de Henfil, o expressivo Julio Shimamoto, o humor de verve nacional de Péricles, a composição elaborada e realista de Flavio Colin, a ironia e o bom humor de Miguel Paiva (Radical Chic e Gatão de Meia Idade), o estilo sociológico e verbal de Angeli (com os tipos politizados como Meia Oito e Nanino, ácido como Bob Cuspe e Skotinhos, bregas como Bibelô, o punk Bob Cuspe, a pornográfica Mara Tara, o guru místico Rhalah Rikota entre outros) que criou personagens que refletem o mundo a si mesmo, e no dia em que eles não servem mais a esse propósito não tem pena, mata!

Que personagem, ou tipo de personagem, o sr. não encontrou representado nos quadrinhos brasileiros e gostaria de encontrar?

Tem muita gente publicando quadrinho de super-heróis em nosso país que não passa de cópias de heróis da Marvel e da DC. É preciso consciência crítica para esse tipo de publicação, mas tem gente que gosta e apoia esse tipo de trabalho. Questão de gosto.

O release divulgado pela editora fala que o sr. catalogou “cada personagem tenha sido publicado em algum jornal ou revista de grande circulação”. E os personagens lançados exclusivamente em livros?

Para escrever esse dicionário os autores (roteirista e/ou desenhista) devem ter publicado de forma impressa ou em um site, de forma digital. Não vale aqueles que trabalham um personagem e faz uma publicação para si, ou seja, engavetada. A tira “As Cobras”, de Luis Veríssimo, foi publicada em livro. Tem muitas outras.

O sr. está há muito tempo debruçado sobre quadrinhos brasileiros. Que características são próprias das HQs nacionais? Ou seja, o que elas têm em comum que, por exemplo, os distingue dos mangás e dos comics norte-americanos?

O estilo, a temática abordada, a linguagem, muitas vezes com nossas gírias, o ambiente – pode ser no Rio (Copacabana, bondinho), São Paulo e os arranha-céus, Salvador (Elevador Lacerda) etc... Esses símbolos, essa identidade e característica encontradas em cada cidade. A utilização de temas e linguagens cotidianas por meio de uma grafia próxima à fonética, a presença de questões filosóficas existências, o humor sutil e mordaz do brasileiro. Isso tudo é marcante numa HQ. "Se queres ser universal, cante sua aldeia" (Leon Tolstoi).

Que dicas o sr. daria para quem quer estudar quadrinhos?

Primeiro escolha revistas que você se identifique com o tema abordado, assim sua visão crítica fica bem melhor. Olhe bem o roteiro, para mim é essencial, pois na minha época todo mundo queria ser desenhista, esquecendo que o roteiro e a temática são o que dão vida. Para quem deseja fazer quadrinhos, o melhor é ler muita HQ de diversos estilos, depois treinar desenho e roteiro. Procurar fazer um arquivo particular de seus trabalhos como rostos, corpo, caras e bocas até chegar a uma identidade do personagem a ser criado. É preciso muito estudo. Fazer quadrinhos tem que ter domínio da linguagem (balão, onomatopeia, quadros etc).

Nas artes gráficas é possível sonhar. Assim como sonhamos na poesia, na música, no teatro e na literatura. A arte gráfica no Brasil renova os caminhos do olhar, reinventa a leitura, modifica a linguagem. É no lugar do desejo social que abarca a arte e o imaginário em seu torno. Em suas formulações conteudísticas, há sempre uma porta aberta para o social, para o poético, o político, filosófico, religioso, para o demasiadamente humano, enfim.

As artes gráficas, embora estudadas com seriedade desde os anos 1960, ainda não foram devidamente mapeadas com relação a seus personagens, enquanto concreção ontológica pelos próprios artistas. Por isso, a urgência em mapear esses personagens, que são capazes de provocar, investigar, ousar, caminhar a passos largos sobre a nossa cultura, comportamento e entretenimento. Este dicionário traz a nossa contribuição para o mapeamento.

O sr. poderia indicar ao leitor do Hábito de Quadrinhos três boas HQs nacionais?

"Manual do Minotauro", da Laerte (Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras). Seus quadrinhos abandonaram as gags cômicas, os personagens fixos e exploraram a filosofia, metafísica e a poesia.

"Graphic MSP: Jeremias - Alma", de Rafael Calça e Jefferson Costa. Trama sobre ancestralidade para discutir questões importantes como racismo, apropriação cultural e pertencimento.

"Cumbe", de Marcelo D’Salete, traz histórias no período da escravidão com personagens que resistiram contra a violência da senzala e do modo de vida opressor daquela época.