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É fácil associar Osamu Tezuka a quadrinhos infantis. Foram mais de 40 anos (quatro décadas!) criando mangás voltados aos mais jovens. E, como seu traço é bem caricatural, é comum, para não quem não o lê, ver o seu nome e lembrar de séries como os ótimos "Astro Boy" e "A Princesa e o Cavaleiro".

Menor e menos famosa, a obra de Tezuka voltada para o público adulto não deve nada aos infantis. Entre tantas HQs dele, a minha favorita é desta fase: "Recado a Adolf". E a favorita dele próprio, aliás, também é: "Fênix", infelizmente inédita no Brasil.

A obra adulta de Tezuka é pouco publicada aqui no Brasil - a exceção é "Recado a Adolf", que já está em sua segunda edição por aqui. Por isso, vale aproveitarmos a coluna de hoje para conversarmos sobre "O Livro dos Insetos Humanos", recentemente lançada por estas paragens (editora Darkside, tradução de Luiz Claudio Bodanese).

Publicado originalmente entre 1970 e 71, o livro gira ao redor da multitalentosa e multipremiada Toshiko Tomura. Isso não quer dizer que ela seja necessariamente a protagonista: são as pessoas que a orbitam as que acabam ganhando mais holofotes.

Toshiko Tomura tem uma trajetória tão errática quanto brilhante: foi atriz e diretora de teatro premiada; designer premiada; e escritora, claro, premiada. Ela é o Leonardo da Vinci do século 20 ou há algo estranho aí?

A chave para começar a entender Toshiko Tomura está justamente em observar os que a orbitam, sejam amantes ou melhores amigos. Há um traço em comum: quando se afasta deles, ela deixa para trás um rastro de pessoas tragicamente arrasadas, mas indiscutivelmente "hipnotizadas", com um misto de amor e admiração.

Pelos relatos dessas pessoas, é possível ter uma imagem mais precisa sobre Toshiko Tomura. Sedutora – irresistivelmente sedutora -, com certeza. Inteligentíssima e ambiciosa também. Talvez, mas ninguém diz isso diretamente, manipuladora, sem escrúpulos e narcisista.

Para os que fizeram parte de sua vida, é fácil apontar suas qualidades. Gaguejam, entretanto, para nomear seus defeitos. Talvez por vergonha por não os ter enxergado de início – e ter se dado tão mal depois -, talvez por se recusar a admitir que uma pessoa tão fascinante tenha um lado tão ruim. Negação da realidade, pura e simplesmente. Ela é uma força da natureza, um buraco negro que atrai tudo e todos para si – quando menos percebe, a pessoa perdeu tudo, inclusive a própria luz.

Tentei não entregar muito aqui, mas deu para perceber que envolver-se com Toshiko Tomura é ser arrastado para uma relação tóxica. Décadas e décadas antes de este termo virar tão popular, o “Deus Mangaká” entregou um verdadeiro tratado sobre o tema. São centenas de páginas envolventes, que misturam drama e suspense, que fazem o leitor refletir: “acho que conheço alguém assim...”.

Há obras de arte que entretêm, outras que fazem refletir, muitas com um pouco dos dois. Algumas poucas são as que mexem tanto comigo que me fazem querer estudar – ou ao menos ler mais – sobre o assunto. "O Livro dos Insetos Humanos" fez isso. Entre outras, me faz voltar à reportagem “Narcisos e Perversos”, de Juliana Carpanez, publicada no UOL.

Diz o início da reportagem: “A epidemia narcisista que vivemos hoje tem consequências muito mais grave que a autopromoção e a inflação de egos, medidas diariamente na bolsa de (novos) valores chamada redes sociais”. Correto, claro. E este mangá nos faz refletir se esta epidemia já não existia e as redes sociais apenas colocaram uma lupa sobre ela.

Tezuka não apenas escreveu e ilustrou um ótimo drama: ele observou um aspecto sombrio que a sociedade, de uma maneira geral, não dava a importância necessária. O homem conhecido como “Deus Mangá” fez a parte dele: nos mostrou que essas pessoas existem e, dependendo do grau do narcisismo, são profundamente perigosas. Agora que já entendemos isso, precisamos aprender a lidar com elas.