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Quando eu comecei a ler a Mafalda, ainda criança nos anos 1980, o argentino Quino (1932-2020) já havia aposentado a personagem – ela foi laçada entre 1964 e 1973. Para mim, claro, não importava: as histórias eram engraçadas e as críticas ao comportamento humano me faziam refletir. Será que eu era tão egoísta quando a Susanita? Tão pão-duro quanto o Manolito? Tão sonhador e distraído quanto o Filipe? E, claro, eu queria ser tão inteligente quanto a Mafalda...

Estreou no final do ano passado, no Disney+, o documentário “Voltando a Ler Mafalda”. Trata-se de uma reflexão interessante: será que a personagem e suas histórias continuam hoje com o mesmo impacto de tantas décadas atrás?

O documentário é muito bacana e abrangente ao mostrar o impacto que Quino tem nos quadrinistas argentinos atualmente. Desfilam pela tela, em entrevistas carinhosas, nomes como Maitena (de “Mulheres Alteradas”) e Liniers (de “Macanudo”), entre muitos outros. O quesito “homenagens e agradecimentos” está muito bem coberto aí.

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Também há menções ao contexto de sua criação, como a família de Quino e a ditadura argentina. Eu, particularmente, queria ter visto mais. Não só do seu contexto, mas do lado do Quino fora da Mafalda: que quadrinhos ele lia na infância? Que arte ele consumia quando produziu as histórias da personagem – cinema, literatura, música? O que aconteceu com ele depois que deixou a Argentina? Como foi recebido o trabalho dele pós-Mafalda? O que esses mesmos artistas entrevistados acham das charges dele? Também foram influentes? Minhas dúvidas são, claro, dúvidas de um fã apaixonado pelo trabalho do Quino.

Voltando à reflexão que o documentário nos propõe: será que a personagem e suas histórias continuam hoje com o mesmo impacto de tantas décadas atrás? Para mim, sem dúvida nenhuma. As tiras são hilárias e permanecem um espelho do incômodo comportamento da classe média argentina, inevitavelmente parecida com a classe média brasileira. E há uma camada que torna “Mafalda” ainda mais profunda: as críticas sociais.

Esta não é a segunda ou terceira vez que “volto a ler Mafalda”, e certamente não será a última, nem a penúltima. E só a partir de uma certa idade (e maturidade) comecei a perceber algo que fez com que eu gostasse ainda mais da obra do Quino: seu olhar agudo sobre nossa desigual e hipócrita sociedade.

Discretamente – ou nem tanto – espalhados pelas histórias, escondidos no espaço branco entre os quadros ou nas falas sem noção da Susanita, estão dolorosos aspectos de uma sociedade tão desigual quanto a argentina, inevitavelmente parecida com a brasileira.

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Pessoas pobres, com fome e dor, classe alta (ou média alta) profundamente arrogante e insensível, um sistema sócio-econômico intricado que parece ter sido criado para perpetuar e até ampliar as diferenças entre os mais abastados e mais necessitados. E, observando tudo, o olhar incrédulo, inocente e bondoso da Mafalda. Aquela desigualdade dói nela, e a dor aumenta quando ela reflete sobre o quanto é impotente diante daquilo tudo. Por mais consciente e bem intencionada que seja, aquela menininha sabe que não vai conseguir consertar o mundo.


A indignação da Mafalda vem, claro, do Quino. E a dor de viver em uma sociedade tão desigual não sumiu dele quando aposentou a personagem. Ele continuou lutando da melhor maneira que podia: por meio de sua Arte. As charges do brilhante hispano-argentino, embora menos famosas, são tão incríveis quanto as tiras da Mafalda. Estão lá o humor, a inteligência, as denúncias sociais, a dor de ser incapaz de mudar. Voltar a ler a Mafalda, para aproveitar o título do documentário, é, claro, uma delícia. E rever (ou ler pela primeira vez) o trabalho do Quino pós-Mafalda é tão bom quanto.