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“Mulher-Maravilha: História” é uma bela fábula sobre ser mulher em uma sociedade injusta e opressora


12/02/2024 09h30

O livro é grande, de capa dura, e o formato mais quadrado é diferente do dos quadrinhos convencionais. Mas o título, “Mulher-Maravilha: História”, e a ilustração na capa “gritam” que se trata de uma aventura da Mulher-Maravilha. Mas não é bem isso, e vale a pena entender do que se trata este que é uma das melhores HQs lançadas no Brasil no ano passado.

A história da princesa Diana, a Mulher-Maravilha, tem várias versões, mas gira em torno dos mesmos eixos. Ela é filha da rainha Hipólita, que comanda uma comunidade isolada formada apenas por mulheres: as amazonas. Em uma versão, são vítimas de feminicídios que reencarnaram para ter uma nova chance na vida, agora em uma sociedade sem a opressão masculina.

Em “Mulher-Maravilha: História”, a escritora norte-americana Kelly Sue DeConnick se aprofunda na mitologia da Mulher-Maravilha, mas deixa a princesa Diana de lado. A história se passa muito antes de ela nascer, antes mesmo de a comunidade das amazonas ser fundada.

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O que vemos está muito próximo de uma reinterpretação da mitologia grega. Há muitas versões, claro, mas de uma maneira geral ouvimos que o panteão era comandado pelo todo-poderoso Zeus, casado com Hera. Juntos, tiveram 12 filhos.

Todo-poderoso em mais de um sentido (força física, poderio militar, hierarquia social), o mandatário dos deuses gregos não foi conhecido por sua fidelidade. Além da prole com Hera, Zeus teve ao menos outros OITENTA filhos com suas dezenas de amantes. Ele fazia literalmente o que queria, como assumir a forma de um humano para se deitar com uma mulher sem que ela percebesse que estava traindo o marido (assim nasceu Héracles, ou Hércules, na maioria das versões de sua origem).

Zeus foi pai de muitos deuses e semideuses, que o viam como líder e exemplo. Como seus filhos divinos e semidivinos se comportavam em relação aos mais fracos (os humanos) e às deusas em uma sociedade assumidamente machista e opressora como esta? Kelly Sue DeConnick usa isto como ponto de partida para sua linda graphic novel.

O que nós vemos, desde as primeiras páginas, são as deusas Héstia, Ártemis, Deméter, Hécate, Afrodite e Atena pleiteado, perante Zeus, uma sociedade menos injusta, em que as mulheres sofram menos e sejam tratadas com mais respeito e dignidade. Entretanto, se Zeus tudo pode, por que ele concordaria com isto?

“Não haverá justiça para as mulheres. Nem agora, nem daqui a cem anos, nem daqui a MIL anos”, diz uma deusa que pode ver o futuro, com visível sofrimento no rosto.

O que as deusas gregas podem fazer neste cenário de injustiça e dor, de indignação e sofrimento, de medo e violência, em que tudo o que elas fazem ou dizem pode e será usado contra elas, de maneira desproporcionalmente pior? Aliás, isto te lembra alguma sociedade com a qual você tem contato?

“Mulher-Maravilha: História” mostra, aos poucos, como as deusas vão ajudando mulheres a se organizaram após serem vítimas de crimes como estupros e agressões. Há um trabalho de recuperação e reparação, de comunidade e fortalecimento. Tudo, claro, às escondidas, porque os poderosos deuses gregos ficariam descontroladamente irritados (como medo?) se vissem mulheres se aliando entre si, pensando e agindo por conta própria. Aliás, isto te lembra alguma sociedade com a qual você tem contato?

E assim vão nascendo as amazonas. A princesa Diana, a Mulher-Maravilha que conhecemos, não está lá. Ao menos, não diretamente. Mas o que vemos surgir são os valores com os quais ela será educada e pelos quais ela batalhará: justiça, igualdade, dignidade, respeito.

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O roteiro de Kelly Sue DeConnick, por si só, já vale a leitura. Mas a arte (os norte-americanos Phil Jimenez no primeiro capítulo e Gene Ha no segundo, e a australiana Nicola Scott no terceiro) também merece menção. As páginas finais da edição nacional mostram os artistas dissecando o planejamento da HQ, como os detalhes nos designs dos figurinos pensados com detalhes impressionantes. Veja a descrição das roupas de uma única amazona, que aparece pouco na edição:

“Toucado feito de galhadas de veado, uma cabeça de lebre, penas de galinha d’angola, asfódelos e penduricalhos de ouro. Cabelo preso em tranças enfeitadas com contas e embebidas em sangue. A pintura de guerra é o sangue da caça do dia. O peitoral é de dentes de urso e conchas de lesma presas à cota de malha. Capuz feito de peliça de raposa. Tatuagem típicas dos citas na perna direita.

A preocupação do artista Phil Jimenez com o design desta personagem tão coadjuvante (você sabe quem são os citas e como são suas tatuagens típicas ou em que as penas de galinha d’angola diferem das de outras galinhas? E o que são míticos asfódelos?) o ajudou a ganhar o prêmio de “melhor artista” no Eisner Awards, o mais importante prêmio norte-americano de quadrinhos. O primeiro volume de “Mulher-Maravilha: História”, aliás, ainda venceu na categoria de “melhor edição” – a obra saiu em três números nos EUA, e em edição única aqui no Brasil.

Pelo roteiro estupendo e pela arte cuidadosa, “Mulher-Maravilha: História” é uma HQ incrível que merece ser lida sem pressa. Como disse acima, para mim, é um dos melhores quadrinhos publicados por aqui em 2023.

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