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Priya é uma super-heroína bem particular. Foi criada com um propósito: ajudar a combater a violência de gênero. O artista indiano que a inventou, Ram Devineni, pensava em seu país e acabou abordando um tema universal, a ponto de a personagem ser reconhecida pela ONU como “campeã da igualdade de gênero”.

As HQs Priya são publicadas na internet (priyashakti.com) e traduzidas para vários idiomas, inclusive o português. As primeiras histórias da Priya (que não está disponível apenas em quadrinhos, mas até em animações) falavam em violência de gênero e direito das mulheres. Todas, menos a última. Em uma guinada e tanto, a personagem agora voa pelo céu da Índia para combater a Covid e seus negacionistas.

Entrevistei Devineni para conversarmos sobre Priya. “A Máscara de Priya”, sua história mais recente, está disponível para leitura em português e de graça, com tradução de Karine Bender.

1 - Como surgiu a ideia de criar a Priya?

A ideia de criar “Priya’s Shakti” [primeira história da personagem, lançada em 2014, também disponível em português] surgiu depois de um horrível estupro coletivo que aconteceu em um ônibus de Nova Déli em 2012. Eu estava envolvido nos protestos em Déli e observei que a violência de gênero era um problema cultural. Depois de conversar com vítimas, também percebi que havia falta de apoio da sociedade para os sobreviventes da violência de gênero.

Eu criei uma personagem feminina de quadrinhos que tem a capacidade de atingir o público jovem. Meu objetivo era mudar a percepção das pessoas, tão cedo quanto possível, sobre o papel das mulheres e, especialmente, a imagem que se tem sobre as sobreviventes.

Priya é a primeira super-heroína da Índia e uma sobrevivente da violência de gênero. Nós criamos uma personagem empática e poderosa que é acessível para meninas e meninos. Priya desafia as visões patriarcais arraigadas e o papel que a sociedade atribui às mulheres e, com o poder de persuasão, é capaz de motivar as pessoas a mudarem.

2 - Priya é vítima de estupro e suas histórias são dirigidas ao público jovem. Que cuidado o sr. toma ao abordar um tema tão difícil como a violência de gênero?

O poder dos quadrinhos está no fato de eles apresentarem temas muito difíceis de uma forma muito acessível e empática. Os leitores podem se relacionar com os personagens e a história, principalmente com a personagem principal, Priya, e entende o que se passa.

Criar uma super-heroína e usar o gênero de super-heróis possibilita aos leitores familiaridade e acessibilidade a esses problemas complexos. Queríamos alcançar os adolescentes porque eles estão passando por um momento de transformação em suas vidas e aprendendo sobre sexualidade, papéis de gênero e violência sexual. Então, criamos uma super-heroína que pode inspirar e desafiar as percepções das pessoas sobre as mulheres na sociedade.

O superpoder da Priya é o poder de persuasão – a capacidade de convencer as pessoas a segui-la e a lutarem contra a violência de gênero. Isso é muito diferente do Superman ou da Mulher-Maravilha, que precisam usar poderes físicos ou mágicos para derrotarem seus inimigos.

3 - As primeiras histórias da Priya tratam da violência contra as mulheres. A história mais recente trata de Covid e da negação da pandemia. O que levou a essa mudança?

A pandemia e seus efeitos na sociedade, especialmente nas mulheres, mal foram discutidos ou medidos. As mulheres estão na vanguarda do combate à pandemia, trabalhando como cuidadoras e médicas. Eles foram desproporcionalmente afetados pela Covid-19, então sentimos que esta história em quadrinhos e este filme [A Máscara de Priya] tinham que ser feitos agora.

Tem havido muita discussão sobre as consequências do vírus na economia e na saúde, mas muito pouco sobre o impacto emocional que ele tem sobre as pessoas. Viver isolado é difícil, especialmente para as crianças, e sentimos que isso precisava ser personalizado por meio da garotinha nos quadrinhos e no filme, chamada Meena. Além disso, queríamos uma forma criativa para os pais falarem sobre a pandemia e a solidão com seus filhos.

4 - Priya existe nos quadrinhos, na animação, em realidade aumentada. Quando o sr. pensa em um tema, ou uma história, o sr. visualiza sobre quais são as melhores maneiras de levá-lo ao público? Será que essa história ficaria melhor em uma animação, em um conto, em uma HQ?

Os quadrinhos foram um sucesso global, com mais de 500.000 downloads digitais e mais de 26 milhões de leitores em todo o mundo. Mais importante do que isso é o fato de termos dado voz e atenção aos sobreviventes da violência de gênero.

A realidade aumentada é muito popular agora e muito mais do que quando começamos em 2013, principalmente para o nosso público principal, que é o adolescente. Conseguimos incorporar muitas informações, elementos interativos e histórias de sobreviventes. Acho que é uma ferramenta poderosa e criativa para dar vida aos nossos quadrinhos.

Mas acho que a animação [é possível assistir aqui, em inglês] é a forma mais popular de alcançar o público globalmente. Mais pessoas assistiram aos filmes dos Vingadores do que lendo os quadrinhos da Marvel. Trabalhamos [nas animações] com algumas das maiores estrelas do cinema de Bollywood, então isso expandiu nosso alcance também.

5 - Que resultados práticos as histórias da Priya alcançaram?

Os quadrinhos da Priya tiveram um impacto no que diz respeito à discussão sobre violência de gênero e ao foco nos sobreviventes. Frequentemente, falava-se apenas sobre os agressores. Não havia conversa sobre as vítimas ou como a sociedade tratava os sobreviventes de estupro e ataques de ácido. A vergonha imposta aos sobreviventes é igualmente dolorosa. É preciso uma família inteira e uma comunidade para ajudar os sobreviventes a passar por essa provação e, eventualmente, se curarem física e emocionalmente.

O impacto da história em quadrinhos é bastante visível em “O Espelho de Priya” [também disponível em português], que se concentra em ataques de ácido. Para esse livro, trabalhamos em estreita colaboração com os sobreviventes, contando suas histórias.

Os sobreviventes muitas vezes reclamaram que queriam ir a público para contar suas histórias, mas a mídia e o público em geral não se interessavam por causa da natureza brutal do crime e das cicatrizes que ficaram. A HQ deixou as pessoas próximas dos sobreviventes, o que as ajudou a contarem suas histórias na mídia. A criação de uma super-heroína e o formato dos quadrinhos tornaram as questões mais acessíveis e iniciaram um debate maior na sociedade sobre como tratar as sobreviventes e como começar o processo de cura.

6 – O sr. foi nomeado “campeão da igualdade de gênero” pela ONU. Como aconteceu?

Quando lancei a primeira HQ, em dezembro de 2014, ela se tornou viral e recebeu muita atenção da mídia. Logo depois, a ONU Mulheres me nomeou campeão da “igualdade de gênero”. Também fiz parte da campanha “HE for SHE” [“ELE por ELA”] para educar homens e adolescentes sobre as questões e direitos das mulheres.

7 – Onde o sr. cresceu? Lia quadrinhos? Tinha personagens e autores favoritos?

Eu cresci em uma pequena cidade no sul da Índia chamada Eluru [de 215 mil habitantes], e basicamente a única coisa a fazer era assistir a filmes em telugu [um dos idiomas oficiais da Índia] e ler os quadrinhos de Amar Chitra Katha [editora de HQs e livros voltados à cultura indiana]. Eu amava essas HQs e elas foram, definitivamente, uma inspiração para mim. Esses são os velhos quadrinhos mitológicos que todo mundo lê no meu país. Foi assim que aprendi sobre a mitologia indiana, que eram os "super-heróis" da Índia - os deuses e deusas indianos.

Quando me mudei para os Estados Unidos, eu me apaixonei pelos super-heróis americanos, especialmente o incrível Hulk. Como uma criança hiperativa, pude me relacionar com o Hulk e seus problemas e explosões descontroladas de emoções. Estudei ciência política no Rutgers College, nos Estados Unidos, e fui engenheiro de computação antes de me tornar documentarista. Eu tenho 48 anos e moro na cidade de Nova York.

O processo que sigo na criação dos quadrinhos tem um que de documentário. Eu passo muito tempo pesquisando os tópicos e entrevistando pessoas. Levamos dois anos para criar os quadrinhos, com metade desse tempo dedicado à pesquisa. Eu mergulho na vida das pessoas que eu foco, já que sempre filmo e conduzo as entrevistas.

Entre as minhas influências estão “Maus”, de Art Spiegelman, que me motivou a criar quadrinhos. A arte sequencial pode falar sobre tópicos difíceis [no causo de “Maus”, o nazismo e o Holocausto, entre outros] e contar uma ótima história.

8 – Na opinião do sr., que personagens, nos quadrinhos ou em qualquer outra mídia, carregam, como Pryia, uma mensagem de defesa das mulheres?

maior influência para mim é “O Herói de Mil Faces”, de Joseph Campbell, que compara mitologia de diferentes culturas e nos ajuda a entender os arquétipos e histórias que contamos a nós mesmos. Muitos dos personagens de quadrinhos e super-heróis podem fazer referência a este livro e o usar como inspiração - consciente ou inconscientemente.

Provavelmente, meu filme de super-herói favorito continua sendo o “Superman” original, que eu assistia quando era criança. Eu senti que a versão do Superman de Christopher Reeve idealizava todos os valores e complexidades que o Superman representa. Ele sabe que não está lá para resolver os problemas de todos e usa seus poderes com moderação. O Superman, assim como Pryia, deve inspirar os outros a fazerem o bem.

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. Nascido e criado em São Paulo, é filho de um físico luso-angolano e de uma jornalista paulistana.

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