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Reprodução/Pipoca & Nanquim
Reprodução/Pipoca & Nanquim

De tempos em tempos, a humanidade obra algumas atrocidades que nos fazem nos perguntar “como isso é possível?”. A Segunda Guerra Mundial e o Holocausto são exemplos claros e recentes. E há, infelizmente, muitos outros episódios que desconhecemos parcial ou completamente.

Não é tão comum vermos edições brasileiras de manhwas, os quadrinhos coreanos. Contei 17 nos últimos 17 anos. E uma delas, lançada há pouco tempo, me fez pensar “como isso é possível, humanidade? Como você se rebaixou tanto assim?”. Trata-se de “Grama”, obra de não-ficção escrita e desenhada pela sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim.

Vamos começar pelo contexto. O Japão, que já ocupava a Coreia desde 1910, entrou em guerra com a China em 1937. Nesse período, os japoneses ocuparam Pequim, Xangai e Nanquim, entre outras cidades.

Um tipo de violência se destacou nessa invasão: escravidão sexual. Mulheres eram reunidas em casas que eram frequentadas por militares nipônicos. Pelo que li, o termo “prostituição” não se aplica porque não era em troca de dinheiro. Eram escravas sexuais mesmo. O tema, violentíssimo, ainda hoje causa impacto tanto na Coreia do Sul como no Japão. O termo mais usado para se referir a elas é “mulheres de conforto”.

“Grama” retrata a história de uma sobrevivente dessa escravidão sexual, Ok-sun Lee. A autora Keum Suk Gendry-Kim fez diversas entrevistas com ela para elaborar este livro de quase 500 páginas.

Keum Suk Gendry-Kim foca sua graphic novel nos relatos de Ok-sun Lee, mas sabe que é necessário explicar didaticamente alguns pontos da história para o leitor. Por exemplo, antes mesmo de o drama de Ok-sun Lee começar, a guerra em questão já havia atingido níveis brutais e desumanos. Em 1937, no evento conhecido como Massacre de Nanquim, militares japoneses enterraram pessoas vivas, usaram cadáveres como lenha e promoveram estupros coletivos em mulheres que tinham de 10 a 70 anos.

É nesse contexto de guerra, e de extrema pobreza, que começamos a acompanhar a história de Ok-sun Lee. Em 1942, ela tinha 15 anos e já havia sido vendida duas vezes. O que era terrível ficou ainda pior: foi raptada, levada para a China ocupada pelo Japão e obrigada a morar em uma “casa de conforto” como escrava sexual.

Pelos relatos de Ok-sun Lee é possível aprender sobre como outras pré-adolescentes e adolescentes coreanas foram amontoadas em um vagão de trem sem janela e arrastadas à escravidão: enganadas (“tenho um emprego para você”), usadas como “pagamento de dívidas” ou violentamente raptadas, como a própria Ok-sun.

A tragédia da protagonista é relatada com sobriedade a cada página. Você sabe que ela sobreviveu – é a narradora -, mas às vezes se pergunta: de onde ela tirou forças?

Tudo mexeu comigo na leitura, mas vou relatar apenas um ponto: quando ela contraiu sífilis. Com o cabelo caindo, feridas nas mãos e muita dor, Ok-sun Lee, claro, foi obrigada a continuar trabalhando. Apenas quando ficou impossível receber soldados que teve direito a tratamento médico. Estéril, ela sobreviveu... e permaneceu como escrava sexual.

Não consigo imaginar o que seja viver anos sob escravidão sexual. “Grama” me ensinou muito sobre esse período inacreditável da história da humanidade e me mostrou como as sequelas são terríveis.

Como fica a vida de uma sobrevivente após o fim da escravidão – uma mulher adulta, sem formação, dinheiro ou identidade? Como é o reencontro (quando há) com a família que a vendeu, com os irmãos que ficaram para trás e não passaram por tudo isso? Como você se recupera de uma tragédia como essa e lida com as inevitáveis e profundas cicatrizes emocionais?

Volto à pergunta de quatro parágrafos acima: de onde Ok-sun Lee tirou forças para sobreviver?

“Grama” é um livro incrível. Fala de humanidade e desumanidade, de empatia e insensibilidade, de guerra e resiliência, de direitos humanos. Estamos em 2020, e refletir sobre esses temas continua sendo tão urgente quanto era na Segunda Guerra Mundial.

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. Nascido e criado em São Paulo, é filho de um físico luso-angolano e de uma jornalista paulistana.

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