Manter o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) neste período de confinamento vai resultar exatamente no contrário da intenção contemporânea do teste, punindo alunos que não tiveram condições adequadas de aprendizagem durante as aulas realizadas a distância, sobretudo egressos da rede pública.
Estudantes que foram impactados psicologicamente pelo isolamento, pobres ou não, também sairão perdendo do Enem da pandemia. Muitos sofreram para se adaptar ao modelo de aulas virtuais, perderam entes queridos para a Covid-19 ou, simplesmente, não conseguiram manter o foco necessários durante as explicações e exercícios em tela.
O abismo de infraestrutura e capacitação entre as redes pública e privada foi cantado em verso e prosa com mais ímpeto nos últimos meses, exatamente pelo choque que causou na massa da população confinada, como se fosse uma novidade. Só ficou mais aparente porque se deu dentro de casa, e não em um prédio distante.
Há tempos com dificuldades para oferecer itens básicos - como material, merenda, uniforme, carteira, lousa etc -, a grande maioria das escolas públicas enxerga tecnologias da comunicação e informação como abstrações. É desonesto ou desinformado o brasileiro que não reconhece essa condição.
Mas não é só no ambiente escolar que o pau que dá em Chico não dá em Francisco. A diferença de modo de vida entre as famílias que podem colocar seus filhos numa escola paga em relação àquelas que não podem ficou igualmente exposta na pandemia. Para ficar no elementar, uma em cada quatro pessoas não tem acesso a internet em casa. Adivinhe a qual dos dois grupos elas pertencem.
E o problema vai além da conexão, anote e complete a lista de memória: computador à disposição em casa, licença para utilização de softwares pagos, treinamento para os programas gratuitos, acompanhamento por monitores mesmo fora do horário da aula. Quarto silencioso com escrivaninha, material didático e livros em abundância, tempo disponível para rever vídeos, tutoriais de reforço e por aí vai.
Se argumentos concretos ainda não forem suficientes para o adiamento do Enem, há um mais conceitual e simbólico deste tempo. Alexandre Lopes, presidente do Inep - órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável pelo Enem – comparou, nesta quinta-feira (14), o exame com a ida a restaurantes e shoppings. Governo que acha que educação é como comer fora ou fazer compras não tem legitimidade para forçar a realização de um teste nacional de ensino.
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação e da cibercultura. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018).
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