Amo livros. E devo confessar que a literatura infantojuvenil é uma diversão, pois junta histórias ligeiras, ilustrações fofas e até um formato, um material, um cheiro e uma textura que podem surpreender. Como não se apaixonar?
Nas minhas redes sociais, indico apenas os livros infantis que passam pela aprovação criteriosa do meu “fofometro”: se eu achei fofo, vou indicar. Esses dias, recebi um livro infantil que conta a história dos Orixás mais conhecidos no Brasil. Eu nunca encontro esse tipo de literatura para crianças e foi uma agradável surpresa receber um material com esse tema.
Folheei o livro e reparei que cada página resumia a mitologia de um Deus africano. Falava qual o seu elemento na natureza, quais as suas cores, o seu comportamento, e, por fim, trazia uma palavra Yoruba usada como cumprimento a esse Orixá. Ao lado do texto, uma ilustração bem colorida mostrando seu tipo de roupa, suas armas e adereços. Li tudo, analisei, acionei o "fofometro" e logo saiu o resultado: aprovado!
O próximo passo era apresentar essa obra para os meus seguidores. E lá fui eu, animada, fazer algumas publicações com o primeiro dos Orixás: Exu. Falei da autora, mostrei o desenho daquele Deus de pele preta e roupa de guerreiro. Resumi a descrição e publiquei! Era só esperar as curtidas. Mas, no meio do caminho tinha um ebó, digo, uma pedra. E foi aí que minha publicação me surpreendeu! Bom, na verdade, não surpreendeu nada. E tenho certeza que você, caro leitor, pode imaginar o que aconteceu.
Assim como Moisés dividiu o mar, Exu dividiu os comentários. A literatura deu um salto na imaginação e foi parar... na religião! A mitologia virou pregação e uma porção de pessoas começaram a falar que eram cristãs, mas que achavam importante divulgar a religião africana. Outra parte das pessoas me agradeceu por falar da religião delas. E ainda teve a parte mais surpreendente (tá bom, também não tão surpreendente assim...) que ficou ofendida e parou de me seguir porque eu falei de religião.
Hein?! Falei de mitologia! Onde eu me perdi na pregação? Fui buscar uma terceira opção pra testar meus seguidores: a Marvel Comics. Evoquei o super-herói Thor, deus nórdico do trovão, falei do seu elemento na natureza, quais as suas cores, o seu comportamento e algumas palavras vikings. Postei. Fiquei surpreendida. Mentira. De novo, não foi surpresa nenhuma. E você, leitor amigo, já pode imaginar o que aconteceu: não aconteceu nada. Thor, o Deus branco de olhos azuis, não foi associado à sua religião pagã. Ninguém se ofendeu. Ninguém associou.
A arte educa por si só. Falar de mitologia é ensinar história e respeito por culturas diferentes. Contamos as sagas dos deuses gregos. Os contos de fadas mais contados e recontados no Brasil têm raízes celtas. Muitos super-heróis do cinema e dos quadrinhos vieram de mitologias espalhadas pelo mundo. Mas, se a pele do herói for preta, daí não é mitologia: é religião que está sendo imposta. Vira medo. Vira censura por causa da ignorância. Vira preconceito.
Se quiser conhecer o livro infantil que causou essa revolução nada laica na semana passada, procure “Conhecendo os Orixás”, da Waldete Tristão, editora Arole Cultural. Lá, você tem um primeiro contato com uma parte do panteão africano que é mais conhecido no Brasil.
Outra dica boa é "Contos dos Orixás", do quadrinista brasileiro Hugo Canuto. É um excelente material para quem quer imaginar Ogum e sua espada enfrentando vilões. São quadrinhos incríveis que apresentam esses deuses sem dever nada para os super heróis de Hollywood.
Mas, para pararmos de nos surpreender mesmo, precisamos divulgar cada vez mais as culturas de nossos ancestrais, sejam eles de quais continentes forem. Assim, talvez um dia, veremos o Deus da Escandinávia Thor ao lado de uma heroína de pele preta chamada Super Oxum, que apaga com suas águas doces a amargura da ignorância. Que o mundo aceite as cores da pele de todas as culturas e que todos aceitem as bênçãos dos super-heróis mundiais.
Helena Ritto é atriz, contadora de histórias, arteeducadora, apresentadora, atriz de voz e escritora.
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