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Símbolos máximos da figura do virtuose com um olho na invenção e outro, comprido, no sucesso comercial, construída com genialidade por Franz Liszt no século 19, os pianistas enfrentam hoje uma fase de transição de desfecho imprevisível. Bem longe do dourado século 19 quando eles é que eram o sucesso de público e venda de partituras, hoje debatem-se entre o culto ao grande cânone das obras-primas e a exumação de criadores marginalizados, ambos do passado; e enfrentam o duro teste de encantar frequentadores das salas de concerto formados e enfastiados por gravações artificialmente perfeitas. Isso sem falar nas interpretações rasas, banais, que se ouve no streaming, em que alho e bugalho têm o mesmo destaque. É sintomático que o pianista contemporâneo busque algo mais além do prazer solitário dos recitais ou a frieza asséptica dos estúdios de gravação; solidão que se repete ao assumir o posto de solista nos concertos com orquestra.
Neste cenário, o norueguês Leif Ove Andsnes, 55 anos, é um dos pianistas que fundem talento excepcional com criatividade, ao mesmo tempo, corajosa, porém sempre criteriosa. Lá se vão 23 anos quando escutei e escrevi sobre um álbum Schubert em que ele justapôs a grandiosa “Sonata no. 20 em lá maior D.959” com quatro lieder interpretados pelo tenor inglês Ian Bostridge, um deles, “Auf dem Strom”, “No rio”, póstumo, que prevê também uma trompa.
Andsnes estava com 31 anos. Ele sempre manteve acesa esta chama em busca de novas sonoridades. Pois seu mais recente álbum, lançado em abril passado e CD desta Semana na Cultura Fm, é dedicado a Liszt. Mas atenção: não ao virtuose célebre do piano, mas ao abade franciscano de suas décadas finais de vida. Ele se intitula “Via Crucis e peças para piano solo”. Reina aqui o religioso, humildemente arrependido de uma vida mundana anterior. Com seus 36 minutos retratando as catorze estações da via crúcis de Jesus Cristo, a obra – para coro misto e piano -- remete a Palestrina e a uma escrita que almeja a pureza do canto gregoriano medieval. Não agradou a ninguém entre 1879 e 1886, data de sua morte. Permaneceu inédita até 1929.
As peças para piano escolhidas por Andsnes retratam justamente o momento em que o pianista que enfeitiçava o mundo dava lugar ao maestro de Weimar e à gestação do homem que encerrou a carreira de virtuose do piano que abraçaria, dali para a frente, a religião: “Consolações – seis pensamentos poéticos S. 172; e duas das dez “Harmonias poéticas e religiosas”.
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