Fundação Padre Anchieta

Custeada por dotações orçamentárias legalmente estabelecidas e recursos próprios obtidos junto à iniciativa privada, a Fundação Padre Anchieta mantém uma emissora de televisão de sinal aberto, a TV Cultura; uma emissora de TV a cabo por assinatura, a TV Rá-Tim-Bum; e duas emissoras de rádio: a Cultura AM e a Cultura FM.

CENTRO PAULISTA DE RÁDIO E TV EDUCATIVAS

Rua Cenno Sbrighi, 378 - Caixa Postal 66.028 CEP 05036-900
São Paulo/SP - Tel: (11) 2182.3000

Televisão

Rádio

Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal

Carlos Eduardo Fantini Martins, de 29 anos, é um atleta de fisiculturismo e ex-capitão do Exército. Portador da retinose pigmentar, uma doença ocular degenerativa que causa deficiência visual, ele estreou recentemente nos palcos e deseja se profissionalizar no esporte.

Em entrevista exclusiva ao site da TV Cultura, o fisiculturista fala sobre sua carreira, seus obstáculos diários e sua visão sobre a inclusão no esporte.


Doença

Fantini convive com a doença desde que nasceu. No entanto, o militar só a descobriu depois de adulto: “Demorei muito tempo para descobrir. Durante minha infância, tive diversos episódios em que eu me enrolei por conta da visão. Eu sempre fui muito ativo, mas eu tinha muita dificuldade de praticar alguns esportes por conta da visão e não sabia disso, eu achava que eu simplesmente jogava mal”.

Carlos percebeu que havia algo de errado com sua visão após entrar no Exército. “Lá, esse problema de visão ficou muito evidente porque tinha muita atividade noturna e muitas coisas que precisavam de uma visão normal. Então, ao mesmo tempo que eu estava precisando mais da minha visão, ela também foi piorando”, conta.

A retinose afeta a visão do portador “de fora para dentro”. É como se fosse uma “vinheta”, e ela vai, cada vez mais, se “aprofundando”. Ou seja, a visão periférica do paciente é a primeira a ser prejudicada. “Vai ‘fechando’, fica só a visão tubular e, a partir da visão tubular, começa a perder a acuidade visual”, explica Fantini. Atualmente, ele só enxerga um ponto central. O próximo passo é a perda de qualidade dessa - já pouca - visão.


Esporte

O fisiculturismo entrou na vida de Fantini após o diagnóstico da retinose pigmentar. “Eu descobri o meu problema de visão, de verdade, em 2017. Fiquei completamente parado. Na época, eu estava buscando uma faixa preta no karatê, estava estudando bastante. Aí eu realmente estacionei a minha vida, parei de fazer tudo. Engordei, fiquei mal. Foi aí que eu encontrei o fisiculturismo. Esse foi o momento da volta por cima, de mudar de vida. Com treino e dieta, consegui emagrecer e consegui melhorar a cabeça”, diz.

Sua vontade nunca foi a de ser “gigante”. Ter um físico extremamente musculoso nunca o atraiu. No entanto, a dificuldade de se atingir esse nível fez com que ele mudasse sua percepção: “Sempre achei bacana a galera que treina, que tinha um corpo mais ‘seco’, mas não tão volumoso. Então eu sempre tive vontade de ficar dessa forma. Quando comecei a treinar, eu comecei também a pesquisar mais sobre os atletas e tudo mais. Aí, vivendo esse estilo de vida, eu percebi como era difícil chegar lá. Foi aí que eu comecei a admirar essas pessoas. Sentindo na pele, fica mais fácil de a gente admirar. Comecei também, ao mesmo tempo, a almejar isso”.

Conforme a visão foi piorando, a minha vontade de competir foi aumentando. No começo, eu não sabia quanto tempo de visão eu teria, e era algo que me incomodava muito. Eu não sabia lidar muito bem com isso. Aí eu pensei: ‘bom, eu preciso competir porque eu ainda quero me ver no palco.’ Era esse o objetivo”, lembra o fisiculturista.

Neste ano, o militar competiu no Musclecontest Campinas e no Musclecontest Goiânia, onde participou de diversas categorias. Além de ter ficado no pódio diversas vezes, ele venceu a categoria especial em ambos os campeonatos.

Vale lembrar que, quando estreou nos palcos, ainda em 2022, Fantini não participou da categoria especial: “É um processo de aceitação, essa é a verdade. Eu não lidava bem com isso, eu não me via dessa forma - como alguém que precisasse de alguma atenção especial. Mas a verdade é que eu preciso e está tudo bem. Graças a Deus, eu posso contar com a minha família, com os meus amigos”.

No final de 2023, ele competirá novamente, agora em busca do seu pro card (“cartão profissional”, honra concedida àqueles que conquistam o direito de competir dentro da liga profissional).


Dificuldades

Em ambientes escuros, Fantini fica “completamente cego”. Por isso, ele afirma que precisa que seus cômodos - principalmente a cozinha - sejam muito iluminados: “Quanto mais luz, mais me facilita. Eu sempre faço tudo no mesmo lugar. Só uso duas bocas do fogão, sei exatamente onde a panela fica, o lado para o qual o cabo da panela está virado, para não esbarrar. Eu sei exatamente onde os copos ficam. Tudo aqui em casa fica sempre no mesmo lugar, porque assim eu não preciso pensar muito para pegar as coisas. Um centímetro que eu tiro do lugar é o suficiente para quebrar um copo, derrubar uma garrafa de café, etc. Eu me condiciono a fazer as coisas sempre da mesma maneira para mentalmente eu decorar a posição de tudo. Também uso muito a audição”.

Com a diminuição da visão, a audição e o paladar do atleta ficaram mais aguçados à medida em que ele começou a utilizá-los com mais frequência. “Faço dieta o tempo todo, então naturalmente qualquer coisa fora do normal eu já sinto o gosto. Temperos, às vezes as pessoas não percebem, e eu consigo quase que descrever a receita inteira de um prato só pelo paladar. Isso não acontecia antes”, alega.

Embora não seja uma tarefa fácil, o fisiculturista vai a pé até a academia. Em certos pontos do trajeto, ele precisa de sua audição para ajudá-lo a atravessar a rua: “A maior parte dessas travessias tem semáforo, então eu consigo atravessar olhando pela faixa de pedestre. Só que tem uma rua específica que não tem semáforo nenhum, e é bem difícil atravessar a rua sozinho. Por mais que consiga enxergar o centro da visão, não dá para confiar, porque um pouquinho que eu viro a cabeça eu já não vejo o carro. Então, já aconteceu de eu ficar ali 10, 15 minutos esperando para atravessar a rua até eu ter certeza que não tinha carro ou até alguém aparecer para me ajudar. Já aconteceu de eu precisar atravessar a rua e só pelo barulho do carro chegando eu percebi e parei”.

Na academia, ele conta com a ajuda de seu treinador, Rubens Freire. Em grande parte dos exercícios, o atleta não precisa de ajuda. No entanto, movimentos específicos podem ser um desafio sem a visão. “Tenho um pouco de dificuldade com movimentos livres e multiarticulares. Por exemplo, o levantamento terra e o agachamento livre, por serem exercícios que envolvem o corpo inteiro de uma vez. Às vezes, a falta de visão me atrapalha um pouco com a questão de postura e equilíbrio. Por isso é importante eu deixar para fazer esses exercícios quando estou com o Rubens. É ele que me avisa: ‘Carlos, abre um pouco a perna direita’. Ou então: ‘Você está torto’. Por ele, eu consigo me acertar. Em exercícios que eu estou sentado ou que são feitos em máquinas, fica mais tranquilo de me encontrar. Mas nesses exercícios livres com bastante peso, realmente a falta de visão atrapalha um pouquinho”, explica.

Um dos principais obstáculos para Fantini no fisiculturismo é a necessidade de enxergar o próprio corpo: "Quando eu vou olhar no espelho, eu tenho que fazer a pose várias vezes, e cada vez que eu faço a pose eu olho uma parte do corpo. Eu não consigo mais ver o corpo inteiro. O que me ajuda muito é tirar foto, porque no celular, apesar de eu não conseguir enxergá-lo inteiro, eu consigo pelo menos mexer no zoom da foto. No espelho mesmo, fazendo um treino de pose sozinho, fica bem difícil. Conto bastante com a ajuda das pessoas".

Inclusão

Quem pensa em uma academia de musculação, em treinos de alta performance e em tudo que envolve uma preparação não imagina que o fisiculturismo seja um esporte inclusivo. Para Fantini, as federações "ainda estão se adaptando", já que o estatuto da pessoa com deficiência é relativamente recente.

Para exemplificar um momento que demonstre sua visão a respeito desse cenário, ele lembra do que aconteceu em sua última competição. "É comum, nas competições de fisiculturismo, o pessoal levar um treinador para o backstage. Existe uma taxa para esse treinador, porque o espaço é limitado. Então cada atleta, normalmente, tem direito a um ou dois acompanhantes ao pagar essa taxa. Para o atleta especial, que precisa de ajuda, não é um luxo ter o treinador. É uma necessidade", dispara.

"Eu tenho que pedir uma isenção à federação, e eles são um pouco resistentes. Eles dão a isenção de inscrição para os atletas especiais. Sim, isso é ótimo. É realmente bom para gerar uma inclusão, só que, ao meu ver, seria muito mais respeitoso para o atleta ter a isenção da taxa do acompanhante", avalia.

O deficiente visual também pontua diversos comportamentos que o deixa desconfortável. "Tenho deficiência visual, mas eu estou ali, eu respondo por mim. Muitas vezes acontece de as pessoas quererem perguntar algo para mim e perguntarem para minha esposa, na minha frente: ‘Ele precisa de alguma coisa?’ Ela poderia perguntar para mim. Às vezes, as pessoas olham para alguém com deficiência como alguém extremamente dependente de tudo", questiona.

Outro ponto é que "a gente não aprende como abordar as pessoas com deficiência, seja cadeirante ou deficiente visual". Carlos destaca vezes em que, mesmo sem pedir, alguém tentou ajudá-lo: "Já passei por situações em que eu queria atravessar a rua e, se alguém chegasse pra mim e falasse da maneira correta (bom dia, precisa de ajuda?), tudo bem. Às vezes, a pessoa não quer ajuda. É um direito dela. Já aconteceu várias vezes de as pessoas me agarrarem no braço e me puxarem. Para o deficiente visual, isso é muito complicado, porque a gente perde o equilíbrio e a noção do espaço muito facilmente. Qualquer empurrão, qualquer esbarrada, a gente já fica um pouco desnorteado. Imagina alguém me puxando. A maneira correta é abordar e perguntar se a pessoa precisa de ajuda, e também perguntar como pode ajudar".


Leia mais: Após vencer a depressão, Rafael 'Rey Physique' quer chegar ao Olympia em 2023

Conheça Ramon 'Dino', que saiu do Acre para buscar o mais alto patamar do fisiculturismo